ir para o Museu Virtual Brasil
A+ A-

Jardim Montanhês

Papo de pescaria é assim mesmo. Todo o mundo sabe que histórias de pescador, para serem boas, têm que ter mentira no meio. Nem sempre. O certo é que a realidade e o imaginário são irmãs siamesas no trato de tais histórias. A que ora se segue é verídica e está intrinsecamente ligada ao ‘Viva o Brasil’, anteriormente contada. Porém, duvide quem quiser e viva a democracia com sua liberdade de pensamento e expressão.
 
Estávamos na região de Cordisburgo, em pleno Córrego do Onça, curso d'água benfazejo e anteriormente já esmiuçado por aqui. A frondosa árvore que nos abrigava em sua sombra ainda estava de pé, aconchegante e bela. Zezito trouxera a cachaça que havíamos encomendado, dessa vez um pouco mais forte, parecendo pinga de cabeça. Queimava a garganta, ardia o estômago e, em seguida, esquentava o peito, e a gente dava aquela soprada. Aliás, a tal onça que deve ter dado nome ao Córrego, se ainda existisse, ficaria ofendida com a expressão ‘bafo de onça’, pois, com toda certeza, o nosso era bem pior. Agora, se o bafo do andar de cima era triste, imaginem o do andar de baixo, com a emissão de gases putrefatos. De qualquer modo, havia a vantagem de estarmos ao ar livre, portanto, ninguém correu risco de vida. Também pudera, éramos regados a cachaça acompanhada de toucinho no feijão. Essa iguaria fez história e era a especialidade Pratos Típicos do ‘seu’ Dico.

sr._dico_com_seu_filho_janir
Dico e seu filho Janir
 
Raimundo Neves, o popular Dico, nosso líder, era uma figura ímpar e, agora que está em outra dimensão, também inesquecível. Como jogador de truco, era experiente e ladino. Memorizava as cartas à medida que iam sendo jogadas e tinha um olhar cruel, de emboscada, na expectativa do grito de seis, já engatilhado. Por isso, era o horror dos horrores ser seu adversário e, pior ainda, sentar-se à sua esquerda. Quando alguém o pegava no pulo e ele corria, ou então, por um ato falho, perdia uma jogada, era a glória. E tome grito, cerveja, pinga, torresmo, feijão, gargalhadas, bafo e peido. Peixe que é bom...

O companheiro Dico gostava de pescar jogando tarrafa e armando redes. Era ele nesse mister e a gente ali, no barranco, dando banho em minhoca. Vez em quando, pegava uma varinha, sentava perto de nós e fisgava um atrás do outro. Alguém dizia: - Vai ser largo! - O Dico olhava com um olho meio torto e mostrava a falha de dentes num riso aberto, franco e feliz. Fisgava mais um e se levantava pra ir dar uma olhada no feijão. Ele era a nossa garantia de peixes e barriga cheia, embora todos ajudassem. Ele era o Astro e nós éramos os satélites à sua volta. Dizem as boas línguas que a origem do olho meio azarolhado do Dico remonta à época do namoro de uma de suas filhas.

O genro, moço sincero e casadouro (tanto assim que se casou com ela), namorava na varanda, enquanto o sogro via ou fingia ver televisão na sala. Então, era um olho na TV e o outro na fresta da porta, o que acabou por entortar uma de suas córneas. Essa explicação para seu olho discretamente vesgo fazia a alegria da turma, especialmente pela presença do genro, também companheiro nessas pescarias.
 
Uma vez, choveu à beça e foi um lameiro só. O fogão, sempre improvisado, havia sido montado em uma reentrância do barranco, à beira do córrego. Dando azo ao seu espírito de servir, lá se foi o nosso querido amigo carregando um monte de pratos, panelas e outros utensílios de cozinha, dirigindo-se ao improvisado fogão. Estava descalço, e o chão parecia uma sopa de quiabo babento. Não deu outra: escorregou, deslizou e... nada disso, não caiu, não. Ficou dançando: parecia um equilibrista desajeitado, e tudo com uma incrível rapidez. Eu estava próximo o suficiente para ir a seu socorro, pegar parte dos objetos e, ainda, quem sabe, impedir-lhe a queda. Mas, ao invés disso, fiquei torcendo para que ele caísse. Quanto mais ele se debatia, mais risadas eu dava, gargalhando às lágrimas. E não é que o danado não caiu? Aquilo foi a tônica da pescaria e, até hoje, sempre que nos reunimos socialmente, rimos bastante do episódio.

Há uma história que se fazia presente em todas as nossas pescarias, marca registrada de nossa relação com o ‘seu’ Dico. Esse caso tinha, como personagens, além dele, dois antigos fregueses de um comerciante turco. Servia também para que os nossos olhos brilhassem de tanta admiração, porque marcava a postura de um homem digno e honrado. Pois dizia o turco, referindo-se às facilidades e dificuldades para receber o fiado em sua mercearia: - Sá Dica, freguesa boa. Sá Ed, mais ou menos. Sá Duca, puta que o pariu!!!

E nós, companheiros de beira de rio, grupo composto de amigos, genros e filhos do Dico, ou melhor, do "seu" Dico, ou melhor ainda, de Sá Dica, ríamos e repetíamos infindáveis vezes essa história, como até hoje o fazemos, com um orgulho besta de amigos, genros e filhos desse fabuloso e encantador freguesa boa.

Danilo dos Santos Pereira


Imprimir Enviar artigo para um amigo Criar um arquvo PDF do artigo
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Escritório de Histórias
Rua Monteiro Lobato, 315 sala 402 - Bairro Ouro Preto - Belo Horizonte- MG Cep: 31310-530 Telefone: 31 3262-0846

Entrar | Créditos
Bertholdo © 2009