Rua Lorena, 169, aponta o endereço do lote em frente a onde nasci e moro até hoje. Ali, moraram, na casa principal, a família do Sr. Josué - conhecido como Lamparina*-, composta por ele, Dona Maria, sua esposa e seus quatro filhos. A mais velha, não me lembro do seu nome, os outros três eram Joaquim, Ana e Édson. Em um quartinho, separado, também de duas águas em telhas de capa de cangalha, debaixo de frondosa mangueira, moravam a Sra. Vanda (‘Miudinha’) e seus dois filhos, o Roberto e sua irmã, de quem não me recordo o nome. E, em um quartinho, anexo nos fundos da casa do Sr. Josué, morava D. Margarida, pretinha, sozinha no mundo.
Dona Maria, pachorrenta morena enfumaçada, salvo engano, era do interior de São Paulo. O Sr. Josué, negro, magrinho, sempre com os pés descalços e sem camisa, provavelmente, era descendente direto de escravo com índio tupi-guarani. Bebia cachaça muito além da medida e, por causa disso, apanhava da sua esposa quase todos os dias. Daí, o homem era impedido de entrar em casa, cantava o que parecia uma canção indígena e dançava até cair no terreiro. Pelo equilíbrio da idade, nosso maior contato era o Edson (mentiroso igual era raridade).
Dona Vanda, mãe solteira de seus dois filhos, vinda da cidade de Nova Lima, era muito pobre. Sobrevivia quase só de doações que conseguia, mas tinha uma virtude: deixava de lado o desespero e cantava (talvez até como forma de enganar a fome). Ela só ficava muito brava - e com razão - quando as pedras que atirávamos, com os bodoques, para derrubar as mangas maduras, caiam em seu telhado... Era palavrão de todo o tipo.
Dona Margarida, velha solteirona, pretinha, magrinha, carrancuda, era lavadeira profissional que utilizava das águas dos poços das lavadeiras, próximo à horta do Sr. Manuel português. O capricho e a higiene dessa senhora eram invejáveis, e sua freguesia era seleta (pessoal que morava no centro e bairros nobres juntos deste). Ela tinha pavor de qualquer meio de transporte. Jamais pisou sequer dentro de um bonde. Buscava as roupas sujas e as entregava, impecavelmente lavadas, passadas e engomadas, a pé, onde quer que fosse. Há boatos que essa senhora ainda é viva, e se encontra em um asilo contando entre 100 e 110 anos de idade.
Dê lá para os dias atuais, muitas outras pessoas passaram pelo endereço como donos ou locatários. E várias foram as transformações das residências e, claro, a grande mangueira já não existe.
Essa é mais uma pequena verdadeira parte da nossa história.
Francisco Lutkenhaus
*Lamparina: apelido pelo ‘fogo’ constante em que se encontrava devido ao consumo exagerado de cachaça.