O estreito relacionamento com o rural e o rústico fazia o dia a dia das mamadeiras das crianças da época. O leite era comprado diretamente dos produtores, e bem natural. Não havia desnatadeira ou qualquer outro processo de industrialização do produto.
De onde hoje é o Anel Rodoviário com a Avenida Dom Pedro II, em diante, no sentido norte e nordeste, era só fazendas de gado leiteiro: de lá, vinha o nosso alimento lácteo.
Aqui, mais perto, entre a avenida e a Rua Alípio de Melo, morava o Sr. Antônio ‘Bacalhau’, velho de fartos bigodes, magrinho (de onde deve ter surgido o apelido), que criava suas vaquinhas leiteiras. Este senhor ficou na memória mais que o leite ali produzido; ficou, também, a saudade de mais uma família popular, numerosa e entrosada com todos da então vila. As festas juninas, por ele promovidas, as danças de quadrilha, a reza do terço, os inúmeros doces caseiros, canjica e quentão a rodo e o pau-de-sebo*.
No portão da minha casa, naquela época, era comum passar boiadeiros em comitiva, conduzindo centenas de cabeças de gado. Essa fantástica memória ficará comigo para sempre.
Poucos anos depois, o leite chegava em nossas casas em um velho caminhãozinho tanque, que tinha uma torneira na parte traseira e, junto, um recipiente que media (em litros, um por vez) para colocar no vasilhame de quem o comprava. Era chamado de ‘vaquinha’. Não sei se ainda existe em algum museu um único exemplar desse caminhão, mas que existiu, tenho certeza absoluta.
Com o progresso, no caminhar do tempo, veio a especulação imobiliária e o inferno da urbanização que, à princípio, parecia tão atraente. As consequências foram bastante fortes: de um lado, a praticidade. Do outro, o afastamento do natural e a dura adaptação a um novo mundo, complicado e hostil. Confesso, cheio de saudade, que se pudesse, teria parado o tempo na infância, onde não só o leite, mas tudo, tudo mesmo, era autêntico, natural, integrado e cheio de histórias e inocência.
Francisco Lutkenhaus, 05 de dezembro de 2004
* Pau-de-sebo era um tronco bem reto, o mais fino possível, e liso, medindo uns quatro metros, emplastado de sebo de boi. Era fincado no terreiro, com um certo valor (em dinheiro) amarrado no topo, que seria a recompensa de quem conseguisse pegar, subindo pelo tronco, usando somente as mãos e os pés para isso.