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Jardim Montanhês

Nada poderia apagar a memória de uma infância feliz, plural e ampla em um lugar maravilhoso, hoje chamado Jardim Montanhês.
Feliz, porque os amigos eram a extensão das famílias, e a liberdade e a amplitude do espaço eram aproveitadas com inclusão e respeito mútuo.
Plural, porque quase todos participavam da larga gama de brincadeiras, quando prevalecia sempre o interesse da maioria, independente do autor da indicação da brincadeira ou das regras que iam surgindo a esmo.
A regência que determinava o que de mais proveitoso seria posto em prática era o clima claro, além da disponibilidade restrita por alguma obrigação ou doença.
Não acredito que a molecada atual tenha conhecimento da metade da riqueza (diversidade) de uma infância plena, criativa (devido à pobreza) e intimidade com a natureza. Alguma coisa, claro, recebemos de gerações anteriores e havia muito de artesanal, como as ‘petecas’ construídas por nós mesmos, utilizando cascas secas de bananas, pedaço de telha que determinava seu peso e penas de galinha apanhadas no galinheiro.
O futebol era, disparado, a predileção da turma; principalmente após os sonhados Natais, quando a bola era, muitas vezes, o único brinquedo que quatro ou mais irmãos ganhavam (apenas uma).
As bolinhas de vidro (de gude), a faixa (produto inteiramente artesanal) e os peões de madeira só eram possíveis em espaços de terra, por isso essas brincadeiras ficaram restritas à periferia. E, hoje, a mentalidade tende para o tecnológico, o virtual e o industrializado.
O nosso futebol era jogado, inclusive nas ruas mais planas, sem uniforme, juiz, bandeirinhas, traves e nem tinha número certo de participantes: era a metade para cada lado, escolhidos um a um pelos pretensos capitães, cuja sequência começava de um sorteio de ‘par ou impar’ (quem ganhava o sorteio escolhia o primeiro, e supostamente o melhor entre todos). Não tinha hora para começar nem terminar, de vez em quando, era proposto um placar de seis ou mais gols para a virada do campo ou para o encerramento da partida, e consequente início da próxima, até que a noite, por falta de visão da bola, encerrava o dia.
Não muito raro éramos (os meninos) incluídos nas brincadeiras das meninas, quando participávamos de jogos como ‘queimada’, Maria Viola, com quem está a bola?, ‘boca de forno’ e outras, com todo o respeito.
Quando éramos em pequeno número, jogávamos ‘Bente-altas’, um jogo de bola feita com meias velhas, duas ‘casinhas’, cada uma com três pedaços de ramo de qualquer árvore mais próxima, formando uma pirâmide de base triangular, e dois pedaços de telha ou tampas de lata, que eram denominadas ‘pás’. As casinhas ficavam, mais ou menos, a dez metros uma da outra, e eram os alvos da bola, atirada com a mão, pelo lançador. O adversário tinha a função de defender com o corpo (não podia usar as mãos) e, da defesa ao ataque, se conseguisse, ao defender a casinha, chutar para longe a bola. Nesse meio tempo, os defensores contavam ponto de acordo com as vezes que conseguiam alternar os postos com o parceiro, que ficava na outra pá, junto da casinha oposta. Se, durante essa operação, o adversário conseguisse derrubar uma das casinhas, o que só podia ser feito se pelo menos uma das pás estivesse descoberta, interrompia-se a contagem dos pontos e trocavam-se as posições entre os atacantes e defensores. O jogo terminava com o alcance, por uma das duas duplas, do número determinado de pontos combinado no início da brincadeira.

A finca
Podia ser um simples pedaço de arame grosso, de 15 a 25 cm de comprimento, com uma das pontas afiadas, ou um prego batido no centro (circular) de um pedaço de cabo de vassoura e depois retirado a sua cabeça, deixando em seu lugar uma ponta afiada. Era preciso terreno úmido, normalmente após as chuvas curtas de verão, para se jogar finca. Podia se jogar em duplas, ou individualmente, ou com até três participantes. O início era dado por quem, na prova do ponto (acertasse com a finca no risco, ou o mais próximo possível deste, os outros obedeciam a sequência na distância do ponto).
Cada jogador fazia sua casinha (um triângulo riscado no chão, com distância equivalente entre elas). As regras eram simples: quem ganhava na prova do ponto iniciava a partida, a partir da primeira fincada, (executada sempre num movimento que partia de segurar entre o polegar e o indicador a parte afiada do objeto, que dava dois ou três giros no seu eixo longitudinal antes de fincar no solo, fincando de pé). Caso caísse, perdia a vez. Ganhava o jogo quem conseguisse, antes dos adversários, contornar todas as casinhas e fincar dentro de sua própria casa, no final.

Bolinhas de vidro (ou de gude)
Podiam participar quantas crianças quisessem. Era preciso fazer um pequeno buraco no chão, normalmente no centro de uma área de três ou mais metros de diâmetro. Combinada a distância desse buraco, chamado ‘piloto’ ou ‘papão’, um a um atirando suas bolinhas, no intuito de colocá-la dentro do piloto, quem conseguisse, de lá atirava sua bola na mais próxima, que alvejada, seu dono ou pegava com outra, ou tinha que passar aquela para quem a acertou. Na sequência, o atirador tentava acertar, de novo, dentro do piloto, e de lá tentar acertar outra bola. Caso errasse, o dono da bola mais próxima do piloto dava continuidade à brincadeira. Quem perdia todas as bolas que tinha estava fora.

Pião
Construído em madeira torneada, tinha na sua parte superior o ‘castelo’ destacado do corpo, e no outro extremo uma ponta de ferro. Para lançá-lo, usávamos uma cordinha chamada ‘fieira’, no tamanho necessário para passar pelo castelo, depois da ponta de ferro e dar tantas voltas quanto devidas para, uma ao lado da outra, atingir a 2/3 do espaço entre a ponta de ferro e o castelo, e ainda sobrar uma ponta com a qual dávamos três ou mais voltas no dedo indicador. Com esse esquema montado, o pião era ajustado entre o indicador e o polegar, de onde, com um movimento brusco para a frente (e em direção ao solo), e, em seguida, bem rápido para trás, o pião ficava girando com grande velocidade, enquanto a fieira era chicoteada e ficava na mão do lançador. Era um brinquedo perigoso porque, nos lançamentos mal sucedidos, o pião embaraçava na fieira e voltava contra o corpo do lançador. Para começar fazia-se um círculo (na terra, e, só podia ser  lá por motivos óbvios) de 20 a 30 centímetros de raio. Cada participante tinha que atingir o interior dessa área demarcada. Caso não conseguisse, ou se conseguisse, e na sequência, ao parar de girar, se seu pião permanecesse dentro da área, ficava retido no centro desta para ser alvejado pelos demais. Nas pancadas sofridas o pião-alvo podia ser jogado para fora do círculo, sendo assim salvo, ou literalmente rachado por um lançador com esse intento.
Creio ainda achar no Mercado Central de Belo Horizonte, piões como aqueles à venda.

Carrinhos de rolimã ou (carrinho de guia)
Composto de três rolimãs, dois eixos de madeira, um pedaço de caibro, mais ou menos um metro e 20 centímetros, que era sua espinha dorsal, uma pequena tábua (assento), e, na parte frontal, outra pequena peça de madeira, furada no centro, por onde passava um parafuso, que também passava pelo caibro e era afixado com arruelas lisas e uma porca. Essa peça girava alguns graus para ambos os lados, dando a direção à nossa obra de arte, o freio manual empurrava dois pedaços de pneus contra as rolimãs traseiras, com efeito positivo máximo de 30% do necessário. Nossa pista era a atual Rua Estevão de Oliveira, da porta da capelinha até próximo de onde, hoje, é a Avenida Dom Pedro II. Às vezes, apostávamos corridas. Nessas ocasiões, eram frequentes pequenos acidentes com vários arranhões pelo corpo ou dedos quebrados e unhas roxas.

Papagaios
Construídos a partir de um pedaço de quadrado de papel, 2 varetas de bambu (uma um pouco mais robusta em relação a outra), perpendicular à primeira em arco (semicírculo), grude de farinha de mandioca, um pedaço de linha, com uma das extremidades amarrando o cruzamento das duas varetas e a outra próxima do que seria o final oposto da careta reta, onde, em alguns casos, se coloca a ‘rabiola’ (essa linha se denomina ‘barbela’), e é nela que se ata a linha comprida (bobinada em uma lata ou manivela). E é, também, na barbela que se regula a posição mais adequada à pressão exercida sobre o semiarco. Em alguns modelos, nas extremidades do arco, eram colocadas algumas tiras de papel chamadas “bambolins”, que, para corrigir o equilíbrio (evitar a rodada), eram retiradas, uma a uma. Outro modelo, chamado ‘sureco’, não tinha nem rabiola, nem bambolins.
Mais tarde, adotando no lugar do papel um plástico fino, foi possível construir um sureco que com puxada forte ou ventania ele produzia um barulho peculiar que lhe rendeu o nome de ‘peidorreiro’. Antes mesmo do plástico, muita gente desenvolveu a arte de fazer papagaios bicolores e até de muitas cores. Tio Zé Contagem era um mestre nesta e em outras artes. Fez vários no estilo da bandeira do Brasil, inclusive inventou um enorme, que podia ser erguido carregando na rabiola uma ‘lanterna’ (armação de bambu coberta de papel com uma vela acesa no centro). Outra coisa que fazia bem, e vendia muito, eram as manivelas que possibilitavam mais agilidade na operação. Ele foi além: utilizando engrenagens que meu pai trazia dos postos de gasolina, que eram substituídas por novas, construiu algumas manivelas com velocidade muito superior às convencionais.
Para nós, moleques do Jardim Montanhês, era uma festa soltar papagaio na beira do campo de aviação Carlos Prates; nenhum fio elétrico ou árvore para atrapalhar. Até que um mau-caráter da ‘Vila Futuro’, hoje Monsenhor Messias, conhecido por ‘Carioca’, apareceu com as ‘pipas’ (sextavadas e com enorme rabiola), usando cerol (linha onde era adicionado vidro moído e cola. Foi o fim da brincadeira para os inocentes e o início de vários acidentes, e até alguns fatais (degolando parcialmente motoqueiros desavisados).
Velocidade para os menores e bicicletas para os rapazinhos era coisa de rico; aqui na vila ninguém tinha. Por isso, nossa imaginação tinha que ser fértil para criar coisas simples, das quais podíamos tirar o máximo de proveito, além de enganar as frustrações. A pobreza transformava em gênios as pessoas simples, capazes de adaptar quase tudo para o bem estar da maioria.
É possível ter participado de várias brincadeiras, muitas criadas pela nossa turma, de que eu não me recordo o nome, nem regras, não importa. O que de fato conta é a felicidade que envolveu a nossa infância, a convivência saudável com pessoas que, em muito, contribuíram para a nossa formação moral e social. Portanto, de coração, dedico essa narrativa a todos os amigos e colegas que tanto enriqueceram minha inesquecível infância.

Francisco Lutkenhaus, 19 de dezembro de 2004

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