Jia foi um personagem famoso no Jardim Montanhês e redondezas. Morava nas bandas da Vila Futuro, mas, como tantos, tinha passe livre e circulava por todo lado onde houvesse córregos, poços, alagados, lagos e lagoas naturais e de enchente. E, nesse negócio de água, o bairro era campeão. O Jia, um negro magro, calado, cabisbaixo, andava descalço já com a calça pega frango, ou melhor calça, pega jia, apelido que ganhou por ser um caçador de jias. Claro, frequentador de bares, entre eles, o Bar do Sapo, onde, em dias especiais, ia gastar o dinheiro com cachaça, resultado da venda do seu colar de jias.
Era assim a caçada: mirava as águas, escutava, observava as espumas e descobria exatamente onde estavam as jias. Sabia ler a espuma e entender o som que elas emitiam. Entrava na água devagarinho e, lento, quase como uma garça, chegava por trás, e, quando a jia se assustava, já estava nas grandes mãos do caçador, a coitada, estava condenada a se tornar prato exótico no restaurante do Pedro Rocha, na Rua Padre Eustáquio com Rua Ingaí. Pegava uma e mais outra, às quais iam sendo amarradas pelas pernas, e, ao final da caçada, estava ele com um colar imenso de jias pendurado no pescoço. Naquele adereço, tinha jia de todo tipo, umas mais gordas, entre outras pintadas, conhecidas por “jias pimenta”.
O Jia era um sujeito muito estranho. Bebia, bebia, bebia e, quando estava no auge, começava a chorar, saía do bar, procurava um lugar público e sossegado, tirava do bolso uma lâmina de barbear e passava a cortar o braço, abrindo nele muitas fendas transversais, e se esvaía em lágrimas. Ninguém perguntava nada, ninguém fazia nada; todos assistiam àquela rotina de autoflagelação pública do pegador de jia. Não sei quem era mais estranho, se o Jia ou se aquelas pessoas que assistiam àquele homem ali se cortando, chorando e se esvaindo em sangue, até ser levado para o pronto socorro. Dias depois, ele aparecia com o braço todo enfaixado e, naquele período de recuperação, quase nem bebia e nem caçava jia. Mas, quando estava quase curado, já sem as faixas no braço, o procedimento se repetia: caçava jias, fazia o colar, vendia no Pedro Rocha, tomava cachaça no Bar do Sapo e se cortava novamente, contudo, com o cuidado de cortar o braço são, pois o outro ainda estava em recuperação.
O Jardim Montanhês mudou; o Jia também se mudou de lá. Tempos atrás, notícias do Jia chegaram. Ele era outro homem: não mais caçava jias, não bebia e havia se tornado vigia de uma madeireira no bairro Serrano.
Osias Ribeiro Neves