O que é o que é que bate asas e não avôa?"
Essa pergunta, feita nos anos 60 por moradores do Jardim Montanhês, mostrava a integração cultural do povo com as atividades do Aeroporto. A resposta não tinha muito a ver com aviões, mas, sim, com uma pessoa: "Seu David Canequeiro". E fazia todo o sentido. Seu David levava a vida fabricando canecos no quintal de seu pequeno barraco. Catava latas de leite em pó, entre outras latas menores, e, em sua casa, dava a elas um trato, colocava alça e as transformavam em canecos. Quando tinha um bom volume, as pendurava por todo o corpo e saía pelas ruas do bairro e arredores, batendo os braços com as canecas e gritando: "Olha a caneca".
Seu David era um homem trabalhador, simples, de origem judia e dono de um bom humor que levava toda a gozação dos moleques como brincadeira e, porque não dizer que a frase - "O que é o que é que bate asas e não avôa"?- e sua resposta - "Seu David Canequeiro" tornou-se o seu próprio marketing e o ajudava a vender o seu produto pela associação direta do seu nome ao produto que fabricava e vendia a preços baixos, como convinha àquelas comunidades circunvizinhas.
Morava na rua Estevão de Oliveira, nº47, que, na época, chamava-se Morro da Graça (nome muito mais poético que o atual), nos fundos da casa da Dona Ambrozina, onde havia vários barracões alugados a diversas famílias. Moravam no mesmo endereço, além dele, Dona Dina e Sr. Joaquim, que tinham os filhos Nilson, Nilva e Nilza. Dona Dina e Sr. Joaquim faziam o melhor bolinho de feijão de que se tem notícias e um bom pastel de carne. Muitos meninos do bairro trabalhavam para eles vendendo os salgados nos finais de semana nos campos de futebol ou mesmo no comércio. Mas isso é outra história para ser contada junto com o comércio ambulante, mais conhecido como viração, praticado por muitas famílias do bairro.
A pequena fábrica de Sr. David era composta por ferramentas utilizadas por bombeiros, como lamparina a gasolina, ferro de solda, furadores manuais, puxadores de arrebites, martelos de bola, tesoura de cortar chapas galvanizadas, torno e pequeno pedaço de trilho, para virar e moldar chapa. Utilizava como insumo na sua pequena produção as latas catadas nas redondezas e doadas pelos moradores, solda, vela, arrebite e ácido muriático. O trabalho dele, totalmente manual, era de boa qualidade. As latas eram lavadas e aquelas que tinham algum tipo de pintura, quando a tecnologia permitia, eram raspadas, ficando na pura chapa. Depois de produzir uma certa quantidade de canecos, as pendurava em quase todo o corpo, transformando-se num mostruário vivo, numa vitrine ambulante, incrementada pelo bater das asas, ou melhor, dos braços, sincronizando-os com o som que saía de sua boca anunciando o produto. Era a integração perfeita e completa do criador, fabricante, marketeiro, comunicador, vendedor, novamente comprador e coletor de insumos e novamente produtor.
Com isso, nunca passava despercebido. Suas canecas brilhando ao sol sempre encontravam uma alma boa necessitada e lá vai mais uma venda realizada. Se alguém olhasse para ele, a venda era certa. Abria os braços, apontava os vários tipos e, com sua lábia, sempre arranjava um jeitinho de deixar o freguês satisfeito com o bom negócio que acabara de fazer. Assim ele foi levando a vida. Criou a sua família com dignidade, respeito e simplicidade. A molecada, incluindo um dos seus filhos, não deixava por menos quando ele saía a vender suas canecas e gritavam uns aos outros: "O que é o que é que bate asas e não avôa?" Ao que todos respondiam, até mesmo ele quando estava por perto, sem perder o humor: "Seu David Canequeiro".
Osias Ribeiro Neves