Cenário: Bar do Nô - Rua Alípio de Melo, esquina do Beco Estevão de Oliveira, Bairro Jardim Montanhês, oito da noite de uma terça-feira de novembro de 1972.
O bar, de uma porta só, com, aproximadamente, três metros de largura por oito de fundos, tinha um balcão pequeno à esquerda de quem entrava onde ficava o Nô. Ao fundo, uma pequena mesa de sinuca e, de frente para o balcão, algumas mesas. O Bar do Nô servia uma cerveja bem gelada e um tira-gosto de primeira, e ainda contava com a simpatia e a presteza de seu dono.
Naquela terça-feira, chegou à minha casa o amigo Geraldo Martins Ferreira, mais conhecido como Geraldo Pasquim ou Gê, com uma notícia quente:
- Cara, o Cintura Fina, ele mesmo, ta lá no bar do Nô... Tá cheiinho de gente olhando o cara, meu. Vamo lá.
Nós dois e mais o Danilo dos Santos Pereira gostávamos da escrita. Depois de duas tentativas frustradas de fundar um jornal, estávamos trabalhando, de graça, como jornalistas no "Oi Bicho", um tablóide inspirado no já famoso "Pasquim" que estava em sua segunda edição. A redação ficava na rua Curitiba, 545, salas 509/510. Aquela seria a nossa chance de entrevistar o mais famoso travesti de Belo Horizonte, mais conhecido pela geração anterior à nossa, que frequentava a zona boêmia da cidade.
Chegamos à porta do bar e lá estava ele, alegre, sem camisa, com uma criança no colo e sendo admirado por todos. O bar do Nô nunca estivera tão cheio. Ficamos na porta, aguardando uma oportunidade de conversar com o Cintura Fina para agendar uma entrevista. Geraldo, de todos nós o mais cara-de-pau, chegou até o nosso personagem, identificou-se como jornalista e solicitou a entrevista. Cintura Fina deu a ele o seu endereço e disse que o procurássemos no dia seguinte para acertarmos os detalhes. Na quarta-feira, conversamos os três (Geraldo, Orneves e Danilo) e decidimos que seria um risco nós, uns caras franzinos, irmos sozinhos. Danilo logo arranjou a solução: chamou o Marcinho, um negro forte, alto, pacato e tímido, mas que, numa situação daquelas, podia impor respeito. Foram, então, o Geraldo e o Danilo, com o Marcinho a tiracolo, e acertaram a entrevista para o dia seguinte, num bar da galeria Shopping Center, na Praça Sete, com entradas pela rua Rio de Janeiro e pela Avenida Amazonas.
No dia marcado, depois de ralar por oito horas na Casa Paraná, onde ganhava o meu sustento, passei na sede do jornal, apanhei dois filmes P&B e, com a minha câmera fotográfica totalmente manual e sem nenhum recurso, fui para o local da entrevista. Lá, estavam os amigos Geraldo e Danilo e mais a turma do jornal, entre eles o Walter, o Torquetti, o cartunista Lúcio Baía, o convidado Darlan Richard e, de quebra, duas belas mulheres e o Reinaldo, irmão do Gê, de apenas 14 anos de idade.
Havíamos preparado um roteiro para a entrevista. Entretanto não sabíamos muito sobre o nosso entrevistado. Gê e Danilo foram os condutores da entrevista, de posse de um gravador Philips, enquanto eu procurava os melhores ângulos para fotografar a figura mitológica de quem já ouvira muitas histórias. Durante a entrevista, Cintura Fina ia se esparramando e se deliciando com vaidade de sua história de vida. Naquele momento, estava travestido de seu próprio mito, uma das figuras mais importantes da nossa cidade e, certamente, o nosso anti-herói.
A cerveja ia descendo copo a copo e todos, inclusive o menor Reinaldo, bebíamos às custas dos salários das nossas atividades oficiais. O Geraldo, funcionário da BMG Financeira; eu, da Casa Paraná, já o Danilo estava desempregado.
Lá pela madrugada, a entrevista acabou. Os filmes também. Danilo e Gê se arranjariam com as meninas que estavam na mesa. Darlan sumira. Walter e Torquetti se mandariam juntos. Sobraram eu, o Reinaldo, completamente bêbado, e o Cintura Fina. Havia sido combinado que quem sobrasse teria que levar o Cintura Fina em casa. Para o meu azar, o Marcinho não esteve presente na entrevista, e confesso que tive medo. Assumi o compromisso e saímos, eu, Reinaldo e o Cintura Fina. Parei um táxi ali mesmo na Praça Sete. Entrei na frente e, atrás, ficaram Reinaldo e Cintura Fina, que começou a passar a mão no menino. Reinaldo dava porrada no Cintura Fina, que parecia se divertir. Quando o táxi estava na altura da Av. Pedro II com rua Jaguarão, o Cintura Fina ficou bravo e falou que "não ia ficar assim, não". Aquele "assim, não", era como se dissesse: "Eu não vou ficar na mão". Acalmei-o dizendo que depois de deixarmos o Reinaldo em casa a gente resolvia. Naquela época, o Cintura Fina morava num centro espírita localizado na rua Francisco Bicalho, quase esquina com rua Desembargador Tinoco, bem atrás do convento das Carmelitas. Na esquina, pedi ao motorista que parasse e descemos eu e o Reinaldo. Cintura Fina permaneceu dentro do táxi, esperando que fôssemos a outro lugar. Mandei o Reinaldo sumir pela rua Desembargador Tinoco afora, no sentido do Jardim Montanhês. Assim, ele fez. Chamei o Cintura Fina, pedi que ele descesse e dispensei o táxi. Chateado, ele desceu, e o táxi se mandou. Com medo que eu saísse correndo (era o que eu pretendia), Cintura Fina me deu a sua pasta para segurar e pediu-me para abri-la e pegar a sua chave. Fomos andando em direção à sua casa, e eu, com a mão, tateando dentro daquela pasta. Não havia nada que me ameaçasse a não ser uma tesoura, uma fita métrica e uma coleção de agulhas de costura com que ele me falou para ter cuidado para não machucar a mão. Chegamos em frente à casa em que ele morava e iniciamos uma discussão. Ele, querendo que eu entrasse, e, eu, dizendo que não, que não estava a fim. Ele insistia. Eu resistia. O tom da discussão aumentou de volume, e ele, então, falou baixinho, quase sussurrando:
- Não fala alto, não, que a mãinha não gosta!... Ela fica brava comigo...
Ele se referia à sua mãe-de-santo, a pessoa que o adotou depois que saiu do presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, e com a qual morava num quartinho dos fundos. Diante do episódio, combinei que ele podia entrar e, quando acendesse a luz do seu quarto, eu entraria. Ele, esperto, apanhou a chave e deixou a sua pasta comigo, dizendo que era a garantia que eu não iria embora. Mas, quando ele acendeu a luz, não pestanejei: joguei a pasta dele por baixo do portão e segui direto o caminho de casa, quase a mesma trajetória percorrida pelo Reinaldo.
No dia seguinte, cedinho, deixei os filmes com o Gilson do Belcolor, amigo do Gê. À tardinha, veio a decepção: as fotos estavam péssimas. Alguma coisa acontecera ao filme e eu tive que procurar o Cintura Fina na casa dele. Cheguei lá, falei com a mãinha dele, ela o chamou e ele veio dizendo:
- Você, heim!...
Desculpei-me, repeti que aquela não era a minha praia, que ele estava forçando a barra e tal-e-coisa e coisa-e-tal. Ele sorriu, preparou-se e fizemos as fotos ali, no quintal da casa e dentro da sala dos santos. A mãinha acompanhou tudo e pediu-me que não publicasse as fotos feitas dentro da sala dos santos.
Osias Ribeiro Neves