Meu primeiro contato com Manoel Gomes Júnior foi em 1964, ano do golpe militar. Na época, perto de completar quinze anos de idade, eu jogava no Petiz do Grêmio Mariano Esportivo e o Eugênio, filho dele, fazia sua estréia no time. Foi o Sr. Manoel que fez a foto daquele time e depois presenteou a cada um de nós, com uma cópia. Depois disso nos perdemos por um tempo, mesmo estando no mesmo bairro, separados pelo córrego do Pastinho, a menos de cinco quadras um do outro.
Aos meus 18 anos, o sonho de me tornar um craque da pelota ia ficando pra trás, trocado, aos poucos, pela música e pela literatura, além dos estudos para, algum dia tentar vestibular e me livrar dos subempregos que encarava para sobreviver desde os doze anos. Foi nessa época, quando participava do GAV, Grupo de Ação e Vida, um grupo de jovens liderado pela saudosa amiga Terezinha Renna e pelo Círis Silva, seminarista recém chegado ao Jardim Montanhês, que retomei o contato com o Eugênio Gomez e sua família. O Círis havia me falado dele dizendo que tínhamos algo em comum, a música. Ambos nos metíamos a ser compositores de MPB. Imediatamente a música nos uniu e nos tornamos os amigos que somos até hoje e, entre uma música e outra, me entrosei com a família do Eugênio e a casa dele tornou-se para mim uma referência cultural, por ele, por seu pai, pela Dona Célia, pela Denise e, mais tarde, pelo Edmundo e pela Yara Novaes.
Mesmo com a diferença de idade, tornei-me amigo-admirador do Sr. Manoel. Em todas as ocasiões em que nos encontrávamos, ora em sua casa, pelas ruas do Jardim Montanhês ou no ônibus, ele sempre me presenteava com aquela conversa agradável e contagiante mostrando-se a pessoa inteligente que era em sua sensibilidade e simplicidade de gente. Gente no sentido mais humano, mais bonito, mais roseano e cada vez mais raro. Quantas vezes ele comentava de um livro que estava lendo, dos seus autores preferidos, entre eles, sempre a presença de Dostoievsky e, me achando uma pessoa que lia como ele, às vezes até mesmo me constrangia porque, se comparado a ele, eu não havia lido nada ainda. Sem saber, ele ajudava a ampliar o meu horizonte de leitura e, com isso, as nossas conversas, muitas vezes curtas, - porque eu passava em sua casa para falar com o Eugênio e, nós quase sempre correndo com as obrigações de escola, festivais de músicas, concursos literários e serenatas para as nossas atuais e possíveis namoradas -, eram extremamente agradáveis e proveitosas.
Certo dia, Sr.Manoel me relatou a idéia que tinha para escrever um conto. Além de original, seu roteiro mostrava nas entrelinhas a marca daquele homem que parecia como poucos compreender o ser humano. Lembro-me bem disso e da narrativa oral que ele construía porque ele ia exatamente na contramão das coisas meio “surrealistas” (não sei se é um termo mais adequado) que eu andava escrevendo. Era uma história com cheiro bom de gente com as suas feridas, dificuldades, limitações, alegria e superação. Tudo muito simples, mas fundo. Por diversas vezes perguntei a ele pelo conto e, afinal, nunca cheguei a vê-lo pronto. Entretanto, tive o prazer de ler sua primeira obra numa coletânea editada em algum lugar que ele me mostrou orgulhoso. Depois me passou outros contos e em todos eles a marca geográfica de um lugar real, de alguma situação vivida ou presenciada por ele e escrita com esmero e, entre eles, elegi “Rosa da Silva” como o meu preferido. Repetia sempre que se tivesse tido a oportunidade de passar por uma faculdade, talvez escrevesse muito melhor. Ele não sabia ou se sabia não dizia, fez a faculdade da vida e dela sorveu o melhor, a sabedoria, a alegria, a generosidade. Suas histórias carregam esses tons e nos encantam.
Desde então, ao ir à casa do Eugênio era também ir à casa do Sr. Manoel. Muitas vezes não encontrava com o Eugênio, mas não perdia a viagem numa boa e proveitosa prosa com Sr. Manoel. Mais tarde fui aos poucos descobrindo que ele era assim com todos que encontrava pela vida, a começar pelos seus filhos. Conversava, com serenidade, sobre os assuntos mais delicados, se envolvia na vida da comunidade, ajudando a levar melhorias para o bairro Jardim Montanhês e tinha um carinho especial com as pessoas mais simples e desprovidas do básico, valores que transmitiu com maestria aos seus quatro filhos.
Fiz uma entrevista com Sr. Manoel para o Museu Virtual do Jardim Montanhês, bairro em que nasci e, durante a nossa conversa, pude perceber que ele amava aquele pedaço muito mais que eu e, me lembro bem do seu olhar alegre e de sua fala firme ao dizer, fechando a entrevista, “Eu sou o Jardim Montanhês”.
O Sr. Manoel infelizmente nos deixou no dia 10 de novembro e a única coisa que me passa é que ele vai fazer falta não só para seus filhos, familiares, vizinhos e amigos, vai fazer falta para o mundo, cada vez mais carente de gente como ele, simples, sábio, generoso e humano. Mas, de maneira positiva como ele era, me permito uma licença poética ao adaptar a frase de Guimarães Rosa e afirmar: “Manoel Gomes Júnior não morreu, ficou encantado".
Do amigo,
Osias Ribeiro Neves