Nesses tempos em que o nosso dia a dia tornou-se uma tremenda correria sem quê e nem pra quê, ainda preservo o vício de me inteirar das notícias logo cedo pelo jornal impresso. Atualmente leio o Estado de Minas, do qual sou assinante, e nem sempre as notícias e as matérias acrescentam alguma coisa ou me trazem algo de novo ou de bom. Entretanto, algumas crônicas, tradição deste jornal, me fazem refletir e ver que nem tudo está no caminho do caos. Entre os cronistas atuais diários destaco o Frei Beto, o poeta Afonso Romano e o compositor Fernando Brant, a quem dedico esse texto.
Todas as quartas-feiras tenho a grata satisfação de ler Brant e sempre me emociono com a sua abordagem, na maioria das vezes pautada em sua experiência de vida, nas suas relações com o mundo e, principalmente, no relacionamento com as pessoas. Observo com admiração a sua fala sobre os seus amigos, da importância de cada um na sua vida e também como fala da sua família, dos pais, dos irmãos, filhas, neta e da memória afetiva que deixa fluir delicadamente em seus escritos. Fernando revela em cada linha sua simplicidade de ver e viver, com a bagagem de quem já construiu uma belíssima e rica história na Música Popular Brasileira, ao lado do parceiro mais constante, Milton Nascimento, a quem nós cidadãos do mundo devemos agradecer pelas tantas e belas canções que enriquecem e acalentam nossas vidas e a vida do país.
Estive com Fernando Brant em duas oportunidades. Na primeira vez, mesmo desejando, não me aproximei, afinal estava diante de um mito e a minha timidez me guardou em silêncio de admiração. No outro encontro, no lançamento de um livro do Carlos Bracher, trocamos umas palavras, depois que fui apresentado formalmente a ele. Lembro-me de sua tristeza pela morte do amigo Gonzaguinha ocorrida recentemente.
Hoje leio as crônicas de Fernando Brant e, inevitavelmente, me lembro da minha família, de meus pais, dos meus 10 irmãos, dos meus amigos e da música e da poesia que também permearam e ainda permeiam as nossas vidas. Lembro-me da nossa participação em festivais de música em Belo Horizonte, no interior de Minas na década de 1970, das composições, das poesias e das parcerias que construíram elos de amizade com Danilo dos Santos Pereira, Eugênio Gomez, Geraldo Martins, Oscar Neves, João Batista dos Reis, Augusto Baeta, Ângela Maciel, Gracinha, Ronaldo Fradim, Zé da Muxibenta, João Grandão entre outros e colegas do Grupo Anonimato como Ladston do Nascimento, Gil da Mata, Matuzalém, Julio Gomes, Darlan Matos e Sidney Resende.
Viajo nas lembranças dos textos de Brant e desemboco nas minhas memórias. Essas, ancoradas no barracão em que morávamos na Rua Estevão de Oliveira, 77, construído nos anos 1930 por meu amado Vô Alípio e que, nos anos de chumbo, tornou-se um espaço inocente de resistência, onde se discutia política, mobilização social, se planejavam ações para ajudar as famílias mais pobres do Jardim Montanhês e Jardim Alvorada e também um lugar em que se produzia música, poesia, idéias e artes plásticas sem nenhuma pretensão futura. Nesses encontros, que reunia músicos aprendizes como eu, tinha também profissionais como João Grandão que já tocava com o professor Idelfonso; Rone que me acompanhou com seu violão-contrabaixo em diversos festivais; Osmar Alves, Círis Silva, Nelson, Letinho, Márcio, amigos de movimento jovem do bairro denominado GAV – Grupo de Ação e Vida. No espaço do barracão 77, meu irmão Osmar estava sempre ensaiando pinturas com os seus amigos João Vilaça, Vicente e, de quebra, meus irmãos menores Oscar e Odair Neves participavam daquelas conversas de gente que se achava grande e que varavam as noites e as madrugadas falando sobre livros, ouvindo LPs na vitrolinha a pilha, tomando café ou cachaça. Naquele espaço democrático fizemos muitas revoluções, estudamos, tocamos muita MPB, nossa paixão, e músicas da terra de Milton e Brant, criamos nossas próprias canções e poemas, choramos por paixões mal resolvidas e estreitamos laços de amizades que permanecem vivas e regadas à emoção até hoje.
Naquele espaço do barraco 77, João Grandão, o ouvido mais privilegiado que conheci, tirava a música na primeira audição dos discos, acertava a harmonia para violão e nos ensinava a maneira mais correta de tocar, sem ousar. Depois, cada um ia inventando o seu modo de reproduzir aquela canção. Autores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque e Edu, Jobim e a turma da Bossa Nova povoaram nossa vida e deram um colorido especial, sem deixar de lado a turma da velha e da jovem guarda, sempre presentes em nossas cantorias.
Diante de nós estava o mundo ao som do Rock and Roll dos Beatles e, aqueles meninos da periferia encaravam a cada novo amanhecer mais um dia de labuta e de estudo. A maioria atuava no comércio e à noite ia para a escola, os trajetos percorridos de ônibus, o que não era nenhum sacrifício. Como era comum nos encontrarmos dentro dos veículos ou nos pontos finais onde a conversa era sempre proveitosa e interessante!
Eram dias de doçura e de delicadeza em plena ditadura e as meninas do GAV às vezes vinham em duplas para também trocar idéias. Algumas se tornaram nossas namoradas e deu até casamento. Minhas irmãs Anicésia e Neli, que viviam ao lado, na casa com meus pais e o resto da irmandade às vezes iam ao barracão ver nossos amigos e servir cafezinho passado na hora para a inflamada turma.
Hoje, mesmo distante uns dos outros na correia do dia a dia, muitas das amizades daqueles anos prevalecem. Continuamos a nos encontrar e falamos ainda de sonhos, de uma música nova que acabamos de compor, de um novo livro, de novos poemas que saíram do forno e, sobretudo dos nossos filhos, nosso orgulho e a quem dedicamos o que temos de melhor. Continuamos a trocar idéias, hoje não mais inflamadas, os tempos são outros, mas, permanecemos sonhando e falando de poesia e de música e, quando leio as crônicas do Fernando Brant me orgulho dele, sinto que ele está muito mais perto de nós e talvez seja mesmo um de nós, sonhadores incorrigíveis um tanto fora de lugar.
Ao Fernando Brant que me deu o mote
Osias Ribeiro Neves