O músico Oscar Ribeiro Neves conta a vida no bairro Jardim Montanhês e sua trajetória profissional
Brincadeiras no final da tarde, pique-salva, peladas nos campinhos, inventar brinquedos... Lembranças que o músico Oscar Ribeiro Neves tem do bairro Jardim Montanhês, onde cresceu, morou boa parte de sua vida e teve uma infância regada a criatividade.
Como sua família era grande, era preciso criar os próprios brinquedos, feitos, geralmente, com carretel, latas de sardinha e de marmelada. Brincar na rua era conciliado com o escotismo que Oscar praticava no Jardim Montanhês e que, para ele, foi uma verdadeira escola de reeducação do jovem, tendo lhe fornecido muitos momentos prazerosos.
O grupo escoteiro, que não está mais em atividade, foi criado no final da década de 60, por Padre Henrique, de origem holandesa, que era responsável pela paróquia do bairro Jardim Montanhês. Além do 3º Grupo de Escoteiro Jamon (Grupo Escoteiro Jardim Montanhês), Padre Henrique também criou o Grupo de Escoteiros do bairro Padre Eustáquio, nesse mesmo período. Como era ele quem lidava diretamente com as crianças, era chamado de “chefe Henrique”. Oscar entrou para o grupo com sete anos e ficou por lá até completar 18. “A gente viajava muito, fazia acampamentos. Foi um aprendizado muito bom, que serviu para a minha vida e ainda vai continuar servindo”, ressalta. Além dos acampamentos e das reuniões semanais, os integrantes faziam relatórios e criaram o “Livro Negro”, onde colavam fotografias e registravam histórias pitorescas.
Campo de aviação
Jogar futebol no campo de aviação era proibido. Mas essa norma não era respeitada pelos meninos do Jardim Montanhês, incluindo Oscar, que gostava de jogar uma “pelada” no tal campo. Muitas vezes, eles tiravam as blusas e as deixavam penduradas na cerca. Certa vez, um policial pegou todas as roupas dos meninos recalcitrantes. Um dos primos de Oscar deu uma rasteira no policial e fugiu para casa. Depois de um tempo, vários policiais a cavalo chegaram em sua casa, para contar o ocorrido a seus pais. Os policiais não registraram queixa, mas o fato acabou gerando medo na garotada.
Travessuras
Junto com os irmãos e amigos do bairro, Oscar aprontava muitas travessuras. Uma delas era a brincadeira da lata. Os meninos penduravam uma lata cheia de água num determinado lugar de passagem. Amarravam uma corda que, à noite, ficava invisível. Quando alguém passava, esbarrava na corda e tomava um banho. Outra brincadeira era a da cobra. Os meninos faziam uma cobra de pano e se escondiam no mato. Ficavam esperando alguém passar na rua para, então, puxarem a cobra e a pessoa levar um susto.
Oscar e seus amigos costumavam roubar laranjas na horta do Sr. Manoel, por onde passavam quando iam estudar na escola Professor Eliseu Laborne Vale. A escola era uma casa com seis salas. Para merendar, as crianças atravessavam a rua e iam até a casa da Dona Regina, que fazia panelões de sopa.
Música
Um grupo de jovens reunidos em um barracão, no fundo da casa dos pais, no Bairro Jardim Montanhês. Amigos, violões, idéias, composições... A efervescência cultural na família Neves contagiava Oscar, que, ainda menino, gostava de ouvir as composições feitas por seu irmão mais velho, Osias, e seus amigos Roni, Cabral e João Grandão. Para aprender a tocar violão, Oscar “tomava emprestado” o instrumento do irmão, sem que este soubesse disso. Descoberta a traquinagem, foi proibido de mexer novamente no violão de Osias. Isso porque tinha apenas dez anos e não sabia tocar direto. Mas ele desafiava aquela imposição e continuava com seu intento de aprender violão. Com o tempo, Oscar acabou aprendendo a tocar e pôde mostrar sua proeza numa festa que o irmão deu em sua casa. “Estavam ele e os amigos tocando, e, eu, com muita vontade de tocar. O pessoal cansou e parou. Eu peguei o violão e comecei a tocar umas coisas que o pessoal nem conhecia direito. Eles viram que eu já tocava e quiseram saber por que ninguém sabia. Expliquei que eu vinha aprendendo sozinho. A partir desse dia, Osias passou a me emprestar seu violão, desde que eu tomasse cuidado. Hoje, ele é um dos meus maiores parceiros.”
A dificuldade maior que Oscar enfrentou foi fazer o pai aceitar que ele se tornasse músico. Isso só foi acontecer quando Oscar participou do Festival de Música de Oliveira, terra de sua mãe, conquistando o primeiro lugar. Chegou em casa entusiasmado com o prêmio. Como a família o apoiou, o pai acabou aceitando a profissão escolhida pelo filho.
Entre as músicas próprias de que Oscar mais gosta está, a que compôs com seu irmão Osias, chamada “Irmãos hermanos”. “Essa foi a primeira música que a gente fez. Apesar de muita gente gostar dela, eu nunca a gravei. Um dia, meu irmão chegou em casa e eu falei que tinha feito uma música e que gostaria que ele colocasse letra. Ele fez a letra, que é, na verdade, um conselho de um irmão mais velho para um irmão mais novo. Era ele falando das dificuldades que eu teria que enfrentar”, comenta Oscar.
Gravações
Em 1984, Oscar teve um projeto aprovado pela coordenadoria de cultura do BDMG, para financiar a gravação de um vinil. Assim, ele conseguiu lançar seu primeiro disco: “Beira de fogo é beira de abismo”. “Meu primeiro disco foi independente. Quem fez todo o trabalho de prensagem foi a Polygram. Na época, tinha-se uma grande dificuldade para se fazer um disco. Tive que ir para o Rio de Janeiro, acompanhar o corte. Nesse período, Marcos Viana também estava lançando seu primeiro disco. Nós viajamos juntos para o Rio. Eu me lembro de nós dois exauridos, sentados no chão da sala de corte, vendo o camarada mexer nas máquinas. O Gilvan de Oliveira e o Juarez Moreira foram os arranjadores do disco. Na época, eu trabalhava em uma rádio de universidade. Então, foi meio tumultuado para gravar o disco, porque eu tinha que fazer isso à noite. Eu saía da rádio correndo e ia para o estúdio. As músicas desse disco são minhas, mas tem algumas parcerias com o Osias, com Welber Braga, um professor de antropologia da UFMG, e com o Danilo Pereira, que é parceiro antigo. Esse primeiro disco acabou abrindo muitas portas. Ele foi divulgado em países como Espanha, França e Estados Unidos, por amigos que residiam no exterior. Nessa época, recebi convite para tocar em outros estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Ele foi meu cartão de visitas. Muitas emissoras de rádio tocaram o meu trabalho. Na época, fui trabalhar na Rádio Inconfidência, com produção e programação. No meu primeiro dia de trabalho, entrei na discoteca e vi o programador colocando minha música para tocar. Eu cheguei e me sentei ao lado dele. Ele não me conhecia. Depois que acabou de tocar, perguntei a ele o que ele achava da música, e ele teceu elogios. Quando ele acabou de falar, agradeci e expliquei a ele que a música era minha. A partir daí, continuei fazendo shows até ter a oportunidade de lançar o segundo”.
Em 1997, Oscar lançou “Auto-retrato”, disco que traz na capa um quadro feito por ele, que também tem uma relação próxima com artes plásticas. Entre o primeiro e o segundo disco, Oscar investiu em formação musical. Estudou na Fundação de Educação Artística (FEA) por três anos e fez faculdade de Música na Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), onde aprendeu violão clássico, teclado e canto. Ainda hoje, continua fazendo cursos paralelos. O segundo disco, na verdade o primeiro CD, foi feito com o apoio de Leis de Incentivo. Em 2002, novamente com o apoio das leis, gravou “Caminhos Abertos”, que contém a música “Pescador”, feita em homenagem a seu pai. Atualmente, Oscar está finalizando “Gota d’água”, cujo tema principal é a água, que contém músicas de Nelson Ângelo, participação de duas sobrinhas e de Cid Ornellas, violoncelista renomado.
Projetos
“Até hoje, existe uma deficiência muito grande na distribuição de discos independentes. Aliás, tenho uma proposta de que o Núcleo de Produções Musicais (NPM), minha empresa, assuma esse lado de distribuição. Já temos bastante contato com emissoras de rádio e pontos de venda. Tenho um projeto bem amplo, que é criar uma loja virtual, além de continuar com os trabalhos no estúdio, onde gravo novos artistas, trabalho com programa de rádio e pretendo trabalhar com distribuição. Também fazemos duplicação do CD com silk, que é aquela pintura direta no CD.”
Jardim Montanhês hoje
“Vejo o Jardim Montanhês, hoje, muito triste. Acho que o bairro virou referência de ferro-velho e oficina mecânica. Minha mãe continua morando lá, e, quando eu passo por ali, fico com saudade do tempo em que ali era um lugar maravilhoso para se viver. Hoje, a Avenida Pedro II acabou com o encanto do bairro. Claro que tem o lado do progresso, que a gente não pode ignorar, mas sua construção foi uma certa violência em relação àquela poesia que existia ali.”
Confira as músicas 'Abelha' e 'Beira de fogo é beira de abismo', do álbum 'Auto-retrato' (1997), de Oscar Neves.
(Oscar Neves e Danilo Pereira)
Não há flores nem jardins
O que será de mim
O mundo me oferece fel
Não é compreender
Como é que pode ser
A vida sem doçura ou meu
Deus do céu
Zum, zum, zum, zum ...
Da colmeia vou sair
Pra voar e zumbir
Até açúcar encontrar
E se acaso onde eu for
Não tiver uma flor
Eu posso até me zangar
Ferrar
Zum, zum, zum, zum...
Vou sem rumo por ai
No mundo a flutuar
Sem saber onde vou pousar
Onde vou comer
O que vou sugar
Flor ou guaraná
Zum, zum, zum, zum...
Mas a vida é pra valer
E é isso que me dá essa garra a fortalecer
Tudo o que há em mim
Toda a força enfim
Pra sobreviver
Zum, zum, zum...
Oscar Neves: Arranjo, violão e voz
Sérgio Moreira: backing vocals
Partcipação especial de Demóstenes Jr.: Cellos
Wilson Lopes: violão aço
Magrão: percussão
Beira de fogo é beira de abismo
(Oscar Neves e Osias Ribeiro Neves)
Êh! Ventania passou
Dentro do meu coração
Sou como esse velho rio
Que já não mais pode corer
Sou como essa triste ave
Que já não mais pode voar
Trancando aqui
Nesta prisão
Nesta minha prisão
Perdido em cacos
Escombros, porão
Êh! Coração se esquentou
No peito em fogueirão
Sou como esse pau de cedro
Que machado não vai cortar
Sou como essa chuva fina
O seu corpo todo a lavar
Dançando à beira
Do seu coração
Caio em seus braços
Oh! Doce prisão
Oscar Neves: voz
Geraldo Vianna: arranjo
Clóvis Alberto: teclado
Weber Lopes: viola
Nenêm (Edras): bateria
Bill Lucas: percussão
Adriano Campagnani: baixo
Eduardo Neves: flautas