ir para o Museu Virtual Brasil
A+ A-

Depoimentos

Enviado por marina em 22/08/2012 11:30:00 ( 3371 leituras )

raimundo_rosto

Meu nome é Raimundo Araújo de Negreiros. Em 1961 cheguei no Jardim Montanhês e permaneci por 12 anos da minha vida. Sou natural de São Raimundo Nonato (PI) e, antes, já havia morado em outro bairro da capital mineira, o Carlos Prates, mas, depois de ter me casado, mudei-me para o Jardim Montanhês, por ser o lugar onde minha esposa Sônia Maria Renna de Negreiros lecionava.
Ela, inicialmente, lecionou no Grupo Escolar Eliseu Laborne e Valle, sob a direção de D. Eni. Depois de pouco tempo, surgiu outra escola, o Grupo Escolar Ursulina de Andrade Melo, tendo sido indicada para a direção. Nesse momento mudamos para a Rua Flor do Besouro, atrás da Rua Flor das Pedras, próximo à escola. Posteriormente, mudamos para a Rua Flor da Redenção, não demorando muito para comprarmos um terreno da família Melo, numa rua projetada - a rua 17 - que nascia à altura do Grupo Escolar onde minha esposa trabalhava. O descaso do poder público fez com que cada morador se empenhasse para conseguir benfeitorias para o bairro. Eu fui pioneiro na minha rua e a luta era braba. Juntamente com João Pascoal Martins, meu vizinho e amigo, cuidamos de eletrificar nossa rua e mais duas, fizemos um bueiro e ainda pagamos em torno de 400 mil cruzeiros para que o fiscal da Prefeitura passasse lá com o trator. Assediado pelos vizinhos, o tratorista assim explicou: ‘só vamos fazer a Rua 17 porque eles fizeram até bueiro por conta própria!’ E não era mentira, mas da propina, ele nada falou.
Após a terraplanagem, a distribuição dos postes e da fiação, demorou ainda bastante tempo para que a Prefeitura fizesse a ligação da energia elétrica. O atraso deixou meus os vizinhos nervosos, já que eles haviam contribuído financeiramente para que a eletricidade chegasse às suas casas. Certo dia, a mãe de Sônia foi nos visitar e, a rua estava repleta de postes e ela perguntou para uma mocinha por que estavam demorando tanto para ligar a luz, ao que ela respondeu: “A senhora acredita que o homem pegou o dinheiro do povo e não pagou?”
Para chegar ao ônibus que ia para o centro da cidade, era preciso andar cerca de um quilômetro, enfrentando lama e poeira. Durante o caminho, ainda bem cedo, eu ia ouvindo os rádios das casas, geralmente sintonizados na Rádio Inconfidência, no programa “Arraial do Caxangá”. O animador pernambucano, apresentador, poeta e cantor popular, brindava os ouvintes a cada manhã com um show de músicas, brincadeiras e uma farta publicidade: “Compre arroz, fubá, feijão e carne seca – tudo que precisar para sua cozinha - no Armazém do Júlio! O Armazém do Júlio tem os melhores preços da praça! Júlio, o mais amigo, o carijó garantido!” E, a seguir, alegrava o público ouvinte com uma canção famosa, como “Luana”. Me lembro de ligar o rádio pela manhã era quase uma obrigação para se posicionar no tempo e nunca perder a hora. Do início da Flor das Pedras, em frente a uma padaria, o ônibus saía superlotado em direção ao centro, via Rua Alípio de Melo.
Naquela época, ainda havia um certo cavalheirismo e os homens cediam lugares nos ônibus às senhoras, principalmente às idosas ou grávidas. Eu, particularmente, andava sempre de pé, às vezes sacolejando no corredor lotado, caindo sobre os outros naquelas curvas que surgiam inesperadamente. A gente, pela repetição da rotina, já reconhecia a maioria dos passageiros daquele horário. E haviam tipos engraçados, tais como um senhor ourives que morava no final da Flor da Redenção. Um dia, ele, sentado em sua cadeira, deu uma meia dúzia de espirros no início da rua Alípio de Melo. Ao ser encarado, logo anunciou: ‘vocês não se preocupem, pois quando eu começo, vou espirrando até o centro...’ Ninguém acreditou, mas ele, de fato, deu continuidade e, a partir de então, todos passaram a participar da contagem dos espirros. Ele espirrava e contava: ‘21, 22, 23...’ E todos já torciam por ele. Mas quando os espirros vinham espaçados, ele demonstrava certa contrariedade: ‘Puxa, só espirrei 36 vezes! Semana passada fiz mais de 40!’”Com isso, as viagens rumo ao centro se tornavam mais amenas e divertidas.

 

Antônio Careca

Me lembro de um proprietário de um bar na região, o Antônio Oliveira, conhecido como Antônio Careca, que permitia que as pessoas do bairro puxassem a energia de suas caixas de luz. Ele era uma pessoa que se preocupava com as outras e, como pertencia à Sociedade São Vicente de Paula, fazia inúmeras campanhas para ajudar aos mais pobres. Era casado com D. Expedita e, com ela, teve várias filhas. Em seu bar, nenhum amigo passava sem beber de um bom vinho gelado, tirado de seu balcão frigorífico. Antônio Careca faleceu em um acidente de carro, enquanto treinava direção num fusquinha que havia acabado de comprar.

 

A saída do Jardim Montanhês

Em 1971, deixei o bairro Jardim Montanhês. Parti rumo ao Rio de Janeiro, em busca de novas oportunidades profissionais, mas mantive minha casa no bairro, que ficou emprestada para parentes.
Depois de algum tempo no Rio de Janeiro, não resisti à saudade de minha terra e retornei definitivamente para o Piauí, para Bom Jesus, na zona rural, onde comprei uma propriedade no vale do Uruçuí Preto. De 2000 a 2002, fiquei em São Raimundo Nonato, minha cidade natal. Posteriormente, regressei a Bom Jesus e, de lá, fui para Teresina, onde resido atualmente.

 

Trajetória

Fui um dos fundadores da União Piauiense de Estudantes Secundários (UPES), em 1958. Em Minas Gerais, iniciei o curso de Direito em Divinópolis, e dei continuidade aos estudos jurídicos em Petrópolis (RJ). No entanto, deixei tudo para cursar Administração de Empresas no Rio de Janeiro, onde fiz pós-graduação em Planejamento e Administração de Produção e Materiais.
Em 1995, lancei o livro “Geminiano”, um conto romanceado imaginado na região de São Raimundo Nonato (PI). Escrevi, ainda, o livro “O último depoimento”, não editado, que relata minha nova experiência como escrivão de uma inusitada CPI na Câmara Municipal de Bom Jesus. Escrevi também o livro “Novae et Veterae”, que traz poesias compiladas dos estilos clássico e moderno. Tenho vários contos e poesias não publicados, sendo a escrita uma atividade à qual me dedico sempre.
No período em que residi em São Paulo, de 1981 a 1989, fui assíduo colaborador do jornal “Ponte e Torre”, publicando poesias com o pseudônimo de Ramon Soriergen. Em Bom Jesus, atuei como Secretário de Educação e Ação Social e de Gabinete por duas gestões municipais consecutivas, Organizei em parceria com professores, poetas e amigos, o 1º Seminário de Literatura Piauiense “Adrião Neto”, que se constituiu num despertar literário da população regional.

 

livro_negreiros_2_400

Capa do livro Geminiano

 

Poesia
Esta é a poesia que escrevi em homenagem aos meus amigos de infância do Piauí, quando regressei em definitivo para o estado:


MAIS JOVENS DO QUE NUNCA
(Século XXI - homenagem aos meus bravos amigos e amigas de 40 anos atrás em São Raimundo Nonato)
Voltei
Trazendo no baú imaginário
Quinquilharias, trapos de lembranças,
Quarenta anos de lutas em terreno alieno...
Lutas inglórias, pelejas salutares,
Entremeadas de vitórias e fracassos...
(Estes, olvidados, esconjurados,
Pois que interessa ruminar o amargo
E acrescentar ao rosto uma ruga a mais?...)
 
Voltei para ficar
E pouco importam lembranças de outras plagas,
Somente as trazidas da infância, da juventude,
Intactas, resistentes...
Na viagem imaginária:
(Meu pai, minha mãe, meus irmãos meninos,
Traquinando ao dia-a-dia de nosso belo mundo sem fronteiras).
 
Voltei em busca do passado:
Deleitar-me com boas lembranças,
Rever amigos de outrora
E buscar em suas fisionomias, cansadas como a minha,
A criança esperta, o eterno jovem,
Sempre cúmplice em nossas travessuras sem maldade!...
 
Nessa busca silenciosa
As pistas se ocultam
Por trás do turvo dos olhos,
Das rugas e deformações físicas
Que a idade nos impôs:
A flacidez por inteiro,
A dentição desgastada
E os cabelos escassos...
 
Onde estaria aquele jovem elegante,
Aquela menina coquete?!...
(E no alongar dos diálogos,
Quase nos desculpamos
Por nossa aparência atual).
 
Mas dentro de cada um
Pouco a pouco vão surgindo
As lembranças mais sutis,
A mútua admiração e respeito
Por ignotas virtudes...
 
É a comunhão dessas almas,
Amigos se reencontrando
Mais jovens do que nunca!...
 

Imprimir Enviar artigo para um amigo Criar um arquvo PDF do artigo
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Escritório de Histórias
Rua Monteiro Lobato, 315 sala 402 - Bairro Ouro Preto - Belo Horizonte- MG Cep: 31310-530 Telefone: 31 3262-0846

Entrar | Créditos
Bertholdo © 2009