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Depoimentos

Enviado por aline em 07/08/2012 14:10:00 ( 2305 leituras )
yara_rostoSou Yara de Novaes Gomes, nasci no dia 25 de agosto de 1966, no Jardim Montanhês, bairro em que morei até me casar, em 1990.
Minha infância foi muito bacana, apesar de ter quintal em casa e ser caseira, a gente tinha possibilidade de fazer coisas na rua.  Onde é a Pedro II, um pouco perto da BR, havia um campo muito grande de chão batido, chamado ‘Campo dos Palmeiras’, e a gente ia para lá brincar.
Como a escola e o grupo de jovens se concentravam no bairro, meu convívio era com as pessoas que moravam na região, o que dava ao lugar um aspecto de cidade do interior.
Eu tinha uma vida muito intensa no Grupo Escolar, que hoje é a escola Estadual Eliseu Laborne Vale. Estudava no Colégio Padre Eustáquio, mas o grupo começou a adotar uma metodologia que, para minha mãe, que era educadora, parecia exemplar, assim a gente acabouse mudando para ela, que ficava a um quarteirão da minha casa.
Lembro-me de ter despertado para o teatro e para as artes cênicas no grupo escolar.  Naquela época, minha casa, por muito tempo, foi uma das únicas da rua que tinha telefone e máquina de datilografar, e, nesse sentido, por muito tempo foi uma casa referencial. Pelo menos nas proximidades da nossa casa.
Papai e mamãe tinham uma tendência um pouco artística, sem serem necessariamente artistas, e isso funcionava como um estímulo doméstico. Qualquer comemoração que tivesse no grupo Eliseu Laborne Vale, eu organizava. Fazia uma dança, um jogral, uma peça de teatro.  E os ensaios eram realizados lá em casa.
A minha profissão começou no colégio, que eu havia entrado na 2° série. Eu tinha uma professora de português que me estimulava muito. Era uma professora normal, de grupo, no dia a dia ela adorava dar poemas para a gente, na aula de Comunicação e Expressão, porque o dia era dividido, apesar de ser uma professora só. Eu era muito estimulada a fazer coisas, a realizar cenas, dentro do grupo.
A gente subia a Rua da Igreja, a Rua Tomás Brandão, ia até o fim e alugava bicicleta onde hoje é a subestação da Cemig. Era um programa que a gente gostava muito de fazer. Alugar a bicicleta e andar no bairro.
Tinham vários lotes vagos com pés de mamona e a gente fazia guerras de mamona. Foi uma infância muito interiorana.
Costumávamos pegar o ônibus 10 que tinha um motorista chamado Sossego, o outro Baiano e o Manoel e eles pegavam e deixavam a gente na porta de casa, coisa de interior. Quando estudei o pré-primário e a primeira série no Padre Eustáquio, eu ia e voltava sozinha. Parecia um especial. A gente conhecia todas as pessoas.
Na Alípio de Melo, a chamada fábrica de fubá, que era da família Abreu, era uma espécie de ‘ponto econômico’, ao lado dos armazéns do Seu Raimundo e da Quitanda do Seu João; mas os donos da fábrica de fubá eram como se fossem os ricos do Jardim Montanhês. De certa forma, eles eram os provedores de emprego.
Como a Rua Alípio de Melo era o caminho de onde se saia ou entrav para o bairro, a gente fazia dela uma linha divisória, entre o lado de cima e o lado de baixo. Talvez eu tivesse um pouco mais de contato com o bairro para o lado de cima, onde ficava a igreja do Chapéu, e moravam alguns amigos.
O Jardim Alvorada sempre foi um adjacente ao Jardim Montanhês, era um lugar visto como perigoso, impróprio, porque para chegar lá era preciso atravessar a BR 262. Vários amigos moravam no bairro Jardim Alvorada e, para ir  visitá-los, era preciso negociar em casa.  A gente não podia pegar o ônibus 124, porque ele tinha fama de ser muito veloz e causar muitos acidentes.
Apesar dos transtornos, a construção da Pedro II foi muito bem-vinda, porque a gente morava na Rua Alípio de Melo, e a criação da Pedro II iria desafogar aquela rua estreita, mão dupla, onde tudo passava.
O aeroporto era demais. Era um lugar interessante porque havia um barranco que, quando chovia, ficava com barro mole, e os meninos iam lá, escorregar. Era um tobogã natural. Minha mãe tinha uma aflição muito grande de os aviões voarem muito baixo, fazerem acrobacias em cima da casa. Eu me lembro dela ligando sempre para o aeroporto, reclamando assim: 'Não é possível! A gente está amedrontado!' Era um aeroclube de formação de pilotos, e eles realmente faziam piruetas e acrobacias. Aconteciam muitos acidentes com aviões e paraquedas que caíam no lugar errado, e isso era um atrativo. De quando em quando, alguém gritava: 'Caiu um paraquedas lá na frente!”- e todo o mundo saía correndo para ver. Lembro-me de que, uma vez, caiu um paraquedas em frente à minha casa. A turma toda foi ver o que tinha acontecido. Antigamente, havia voos diários que eles faziam com os teco-tecos. Depois, passou a ser só no final de semana.
Era um passeio ir ao aeroporto. Lembro-me que, quando eu estava com coqueluche, tinha uma simpatia que dizia que eu teria que andar de avião para melhorar. Foi a primeira vez que eu andei em um teco-teco. Imagina, nunca tinha andado de avião. Foi uma sensação maravilhosa. O aeroporto também era um personagem estimulante na vida da gente.
A construção da igreja do Chapéu foi muito revolucionária, até pela arquitetura transgressora em relação ao bairro, que é muito simples, sem nenhum arrojamento arquitetônico. A construção da igreja foi muito impressionante. Padre Gregório, que fez essa igreja, era empreendedor para a época e ficou muitos anos na comunidade. Imagine essa construção tão diferente há uns 20, 30 anos atrás. Era muito arrojada.
Na época eu pertenci ao grupo de jovens da igreja, porque me apaixonei pelo líder do grupo. Por isso, nunca fui muito empenhada no trabalho. Nos encontros ensaiava-se música, dividiam-se tarefas na Missa,. Ainda havia grupos de trabalho social, comunitário, mas eu não cheguei a fazer parte. Era comum os jovens se encontrarem antes e depois da missa de domingo, como uma atividade social. A igreja era um ponto de encontro, onde ocorriam as quermesses.  
Mamãe e papai comentavam que para chegar no bairro eles pegavam um bonde até a rua padre Eustáquio com Vila Rica, num bar chamado Bar do Império. Mamãe dava aula à noite, e, apesar de ter empregada, papai ficava com a gente à noite. Ou ele buscava a mamãe no Bar do Império ou alguns alunos da mamãe a acompanhavam até lá em casa. Ela dava aula fora do bairro.
Mamãe me teve mais velha, depois, logo se aposentou. Lá em casa tinha cisterna, era preciso ligar bomba para encher a caixa d’água.  
Por muito tempo nossa casa foi um referencial. Um lugar onde as pessoas iam muito. Mamãe era professora, papai sempre foi muito culto, apesar de não ter formação, sempre tivemos muitos livros e, com isso, o espaço se tornou um lugar de consulta, para fazer pesquisas. Sempre aparecia alguém pedindo para telefonar ou para que escrevêssemos uma carta.
Papai teve um time de futebol, chamado Titanus, em que ele congregava várias pessoas. Ele me chamava de mascote do time.  Eles tinham uma camisa vermelho bordô com uma gola preta.
O Padre Gregório, foi uma pessoa muito importante no bairro. Ele tinha um papel normativo, se preocupava com o desenvolvimento da região. Era um padre jovem, bacana, comentava-se que ele não gostava muito de carolas.
Me casei em 1990 e continuei indo ao bairro sempre para visitar papai, mamãe. Fui morar no Nova Suíça, depois no Centro, onde fiquei até 1999. Fui para o Recife. Depois, fiquei mais um ano aqui e fui para São Paulo.
Sob influência de meus pais, todos em casa seguiram caminhos ligados à cultura. Apesar da mamãe não ser explícita, acho que ela tem uma grande dramaticidade em relação à própria vida. É grande contadora de casos, de piadas, uma congregadora de pessoas. Do papai, fomos influenciados no gosto pelos livros, pela pintura e pela música.  Nossa casa sempre foi um lugar onde se entrava e tinha uma radiola, tocando música clássica. Papai gosta, especialmente, dos russos, ele tem uma ligação com a cultura russa de um modo geral. Tínhamos um ateliê, em que ele fazia flâmulas, que eram vendidas. Nossa casa sempre foi um lugar onde se ouvia música, viam-se quadros, se contava histórias, e se falava sobre filmes.
Existiam cinemas nos bairros. Perto da gente tinha o São Carlos, que era no Carlos Prates, no início da Padre Eustáquio, e o cinema Progresso,  que era meio ruim, na mesma rua. Eu ia mais ao cinema que ao parque.
 

O Jardim Montanhês hoje
Hoje em dia, acho um bairro muito inseguro. Papai tem uma ligação romântica ainda com o bairro. Ele acha que nada vai acontecer, parece que ele é imantado ali. Ele ainda está lá preso naquele Jardim Montanhês do córrego. Não existe isso mais, não tem Padre Gregório, não tem ninguém mais. Hoje as coisas são muito mais arrumadas e, por isso, piores.
Papai acha que sair do bairro é uma traição com as pessoas que ficaram: “Se todo mundo está aqui, por que eu não posso ficar? Por que eu que vou sair? Por que eu sou melhor que as pessoas daqui?” Papai ainda fala “vila”, eu moro na vila. Ele ainda está lá, por isso não sai de lá. Acha que está na vila.
Se não fossem meus pais, para mim, o Jardim Montanhês já teria ficado na memória. 

 

Depoimento cedido em 15/07/2004  

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