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Depoimentos

Enviado por marina em 06/08/2012 17:40:00 ( 1754 leituras )

233Nasci em Uberaba, dia 17 de dezembro de 1923 e vim para o Montanhês quase que fugido, porque eu morava num barracão na beirada da avenida Amazonas, e o barracão era ao lado de um deposito de material velho e então começou a morrer gente lá aí eu pensei: “eu não vou ficar aqui não”. Mas era assim, um dia você acordava de madrugada porque ouvia um barulho, aí corria até a Avenida Amazonas, e tinha uma carreta virada de cabeça para baixo. Outro dia era um sapateiro que suicidou, outro dia um camarada que morreu, e eu pensei: “esse negócio está ficando perigoso”. Então a Celi, minha esposa, tinha um pecúlio de 185 mil cruzeiros na previdência, e eu falei: “vamos comprar uma casa”, então eu coloquei um anúncio no jornal, dizendo que comprava uma casa de até 250 mil cruzeiros, daria 185 pela previdência e o resto seria a prestação. Então 185 a previdência pagou e o resto, me parece que 65 mil foi por minha conta, porque eu arranjei um empréstimo no banco e fui pagando. E que diferença! Quando nós viemos para cá, arrumamos a casa, tudo direitinho, aqui ainda não tinha água. A casa que compramos era de um motorneiro, o Zé. A primeira vez que nós viemos estava tudo arrumadinho e nós viemos à noite, eu lembro que Eugênio era pequenininho. Isso foi 1956, e eu vinha carregando a Denise, e lá em cima no alto, já tinha aquela capelinha e lá tinha um serviço de alto falante, e estava tocando, uma música, “Los Letters”, linda música e era uma noite bonita, uma noite de julho e nós vínhamos andando aqui, porque não tinha ônibus, não tinha nada naquele tempo, e naquela noite nós ganhamos uma serenata. Para você perceber como o Jardim Montanhês se colocou completamente diferente do lugar que eu morava, porque lá era uma roça meio cidade. Então nós viemos para cá e começou a nossa luta.

 

 

Começou a luta por não ter água. A D. Mercedes gostava tanto da gente que enchia duas latas de água e vinha trazer para a gente aqui em casa. A gente tinha também dificuldade para chegar em casa, porque tinha que pegar o bonde, não tinha ônibus. As vezes a gente chegava em casa todo molhado, Então a nossa vida aqui começou assim, com muito esforço, essa coisa toda, nós começamos a dar certo, e criamos os filhos. Passamos muito aperto, muita dificuldade aqui. Teve um dia, que eu me lembro, “você lembra do Feio, que morava aqui”, nós chegamos aqui e a D. Vera falou assim, a única coisa que tem aqui para comer é arroz, mas a D. Vera tinha um pé de chuchu, ela chegou com o chuchu e o arroz. E aí a nossa vida foi desse jeito. Aqui não foi fácil, mas teve um dia que eu cheguei aqui e, naquele tempo você chamava um médico e ele vinha em casa, o médico da previdência vinha em casa, o médico do ILPB, eu acho, na época eu era bancário, então eles vinham em casa também, eu lembro que o Eugenio estava passando mal e nós chamamos o médico da previdência e na hora que ele olhou para ele, falou: “você está com tifo”, quer dizer, a gente teve tifo aqui, depois nós passamos uma fase muito difícil com o Edmundo, o Edmundo teve nefrite, a Denise também teve um problema sério, porque ela foi dar uma corrida dentro de casa e ela estava doente, dentro de casa, e tinha uma senhora nos ajudando, e a senhora vinha com uma panela de água fervendo, e elas se esbarraram e as duas tombaram, e a pele começou a descascar pelo corpo afora e daí a meia hora nós estávamos lá no Hospital São José. Então nós tínhamos problemas de todo jeito, mas o Montanhês é o Montanhês, a gente conseguiu superar tudo aqui e o amor que eu tenho pelo Montanhês daquele tempo, é o mesmo de hoje, não mudou nada.
O Eugênio ainda insiste comigo, “Oh pai, vamos lá para Lavras, lá para o senhor é melhor...”, mas não adianta, eu já tenho 41 anos de vida de Montanhês. A gente não abandona essas coisas de uma hora para outra, isso tudo é uma história. Eu quando brinco assim, eu sou Jardim Montanhês, é porque eu participei de tudo aqui. Eu lembro de uma vez, eu trabalhava no banco, passei a fase do banco, passei a fase do sindicato, fui diretor de sindicato, vivi praticamente no sindicato durante trinta anos. Eu lembro que eu falei com o Sardinha, que mexia com política e essa coisa toda, e eu falei com ele que nós estávamos querendo abrir a rua direitinho e tudo aí eu peguei e falei, “olha Sardinha, o Juscelino vai fazer a inauguração das casas populares, você vai na prefeitura e fala com o Celso Melo Azevedo, o seguinte, se ele não abrir essa rua aqui, nós vamos fazer uma manifestação com ele na chegada de Juscelino”, aí ele me olhou assim, e ele era de muita paz, então ele foi lá e falou com Celso Melo Azevedo. Aí o Celso falou assim com ele, “olha Sardinha, para esse tipo de manifestação, nós temos polícia”, e ele, “mas tem um negócio, o moço trabalha no sindicato e conhece muito esse negocio”, e você acredita que no dia seguinte, no dia da inauguração das casas, cedo tinha um trator lá na rua, mas assim a gente foi conseguindo as coisas. Depois veio água, e assim foi melhorando. E quando eu vejo, por exemplo, a questão dessa favela aqui, São José e esses troços aqui, essa favela existe por causa do descaso da prefeitura, eu lembro que nós tínhamos uma cisterna aqui e quando a bomba enguiçava eu ia procurar o seu Cris, lá no alto no morro, quer dizer, além da favela, no alto da favela, porque naquele tempo não era favela, então eu atravessava aquilo ali e eu podia atravessar a qualquer hora da noite que não tinha nada, a gente não via nada, não tinha uma casa nem nada, não tinha nada que demonstrasse que poderia ser uma favela. Se naquela época a prefeitura fiscalizasse, o que aconteceria, nunca teria favela aqui, mas deixaram o negócio solto, então hoje é desse jeito, tornou-se até um lugar perigoso.
Mas todo lugar marca a gente por uma coisa extra, e nós fomos marcados por uma coisa extra. Quando eles estavam construindo essa igreja aqui, o Edmundo devia ter uns 2 anos e a Iara 1 ano, e eu estava passeando com o ele no meio daquela construção ali, cheia de arame farpado e essa coisa toda, quando eu ouvi um choro, quando eu olho para traz o Edmundo com o rosto cheio de sangue. Duas pontas de arame farpado bateram nos dois olhos dele e eu pensei, “está cego, não é possível”, pela quantidade de sangue que estava saindo, eu lembro que um pedreiro que estava lá, ainda falou assim, “não assusta não moço, Deus ajuda que não há de ser nada não” e uma amiga nossa a Fia, filha de um motorista de lotação, pegou o Edmundo e levou no Zé, que tinha uma farmácia aqui, eu sei que o Edmundo tinha marca de furado na cara toda, menos no olho, “Graças a Deus não teve nada”. Então eu acho que essa igreja se algum dia falarem em milagre eu vou falar assim: “o primeiro aconteceu comigo”.
Outra coisa que marcou a gente também foi o campo de aviação. Eu lembro de uma vez tinha um avião caído no barranco, e um outro no campo de Minas, 15 de novembro. Então eu tenho a impressão que o avião era de papel e que duas mãos poderosas torceram ele aqui assim. Na Pedro II, dizem que o aviador ainda gritou para os meninos saírem do campo que eles estavam jogando bola.
Outra lembrança é da segunda fábrica de flâmula de Belo Horizonte que foi criada aqui no Montanhês, aqui em casa. Eu andava numa lona, como ando até hoje, mas só que eu precisava de um serviço extra, e como eu trabalhava no banco, nesse tempo eu trabalhava no Banco do Comércio e da Indústria, e lá eu era um bancário normal, mas eles cismaram de me levar para a gráfica do banco, então eu passei a ser gravador de chapa, impressor, fotógrafo, então eu pegava essas máquinas de 3, 4 metros de comprimento e fazia essas fotografias técnicas, e aí eu fazia as fotografias para depois fazer as matrizes, então durante 15 anos eu fiz flâmula.
Como eu vivi uma vida cheia de sofrimento eu tinha que descarregar toda aquela energia, aqueles problemas em alguma coisa, então eu descarregava na literatura, ou escrevendo alguma coisa. E eu sempre tive um princípio que eu só escrevia uma coisa que eu pudesse provar. Então eu lembro que eu frequentava a fila do INPS, aqui no Padre Eustáquio, então eu via aqueles meninos que chegavam a meia noite, uma hora da manhã, para depois, no dia seguinte vender o lugar na fila para os outros, então eu vi isso muito, então eu tenho a certeza que 80% do que eu escrevi, do que eu me esforcei, foi baseado em realidades. Eu lembro do Jardim Montanhês quando eles mudaram a linha de ônibus que passava na rua Alípio de Melo, então eles fizeram o prolongamento da Avenida Dom Pedro II, e então uma passava pela Dom Pedro II e a outra passava por cima, pelo Padre Eustáquio, e isso me deu a ideia de fazer um conto, e ele conta a mudança que aconteceu no Jardim Montanhês.
Eu sempre me satisfiz com o Montanhês, eu nuca pensei em sair do Montanhês. Eu lembro de um cara que queria comprar o meu lote e falou assim comigo, “vou te dar um apartamento espetacular”, e eu perguntei, “nesse apartamento tem uma jabuticabeira?”, e ele respondeu, “não”, e eu, “então pode cair fora”. Um lote que tinha uma jabuticabeira, três mangueiras, uma laranjeira, uma ameixeira, um terreno grande, você com toda liberdade, nunca fui assaltado aqui, você tem é que gostar de um lugar assim.

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