Sou Maria José Gomes Carvalheiro Rosa. 'Gomes' por parte de mãe, 'Carvalheiro' do meu pai e 'Rosa' do meu marido. Nasci no dia 12 de junho de 1947, em Belo Horizonte. Meu pai era José Maria Carvalheiro e, minha mãe, Ana de Jesus Gomes Carvalheiro, ambos portugueses, sendo que meu pai era de Lisboa e minha mãe de Trás os Montes. Minha mãe veio para o Brasil com nove anos e, meu pai, com 20. Eles se conheceram no bairro Jardim Montanhês, casaram-se e, então, eu e meus sete irmãos nascemos aqui.
De Portugal, nós trouxemos alguns costumes, como a bacalhoada, de que eles gostavam muito, e também bolinho de bacalhau, bolinho de abóbora, rabanada e litrilha, que é um macarrão fino e doce, feito com canela. Na véspera do Natal, sempre tinha que ter bacalhoada feita com bacalhau do Porto mesmo, que é daqueles bacalhaus grossos. A bacalhoada do português tem que ter batata, cebola, vinho, pão e azeite de oliveira, português mesmo. A gente costumava colocar frango na mesa junto com a bacalhoada. De sobremesa, comíamos litrilha e, de café da manhã, rabanada. Nós tínhamos uma parreira de uva moscatel, que é a preta, e um de uva branca. Em vez de dar presentes, a gente presenteava com a uva numa cesta bonita. Com o pessoal da Casa das Abelhas, a gente trocava uvas por bolos e biscoitos feitos com mel. Era a tradição deles. Eu faço bacalhoada qualquer dia que quiser, mas eu não gosto muito. Prefiro o bolinho de bacalhau. Minha mãe sempre admirava festas de família. Era sagrado a gente se reunir para comemorar. Ela fazia muita fartura de comida e vinha muita gente.
Também como costume de Portugal, meu pai fez a nossa casa toda de pedra, que virou uma das referências do bairro Jardim Montanhês.
A Casa de Pedra
Meu pai era dono de uma pedreira, que ficava na BR 040. Ele tinha vários funcionários e trabalhou por muito tempo, até que não aguentou mais e se aposentou, passando a pedreira para a frente.
Para construir nossa casa, ele trazia as pedras para o Jardim Montanhês, de carroção, com alguns cavalos que ele tinha. A ideia de fazer essa casa de pedra veio de Portugal, porque muitas casas de lá eram feitas assim.
Nossa casa tinha quatro cômodos: dois quartos, cozinha, sala e o banheiro do lado de fora. As paredes tinham 50 centímetros de largura e, o alicerce, um metro e meio de pedra de meio fio. Quem construiu a casa foi o Sr. Joaquim e um outro pedreiro, mas a ideia foi do meu pai.
Apesar de eu e meus irmãos acharmos a casa feia e baixinha e termos rebocado e construído outra casa a partir dela, ela era histórica. Vinha muita gente aqui para poder tirar foto da casa para colocar em calendário, e as crianças do bairro, quando faziam excursão na Casa de Abelhas, acabavam passando para ver a casa de pedra, já que era perto. Era um ponto de referência. O pessoal até falava: "É lá perto da casa de pedra"; "Desce na casa de pedra"; "Pergunta na casa de pedra"... Alguns arquitetos já vieram ver a casa e a largura das paredes e até o Jornal "Estado de Minas" veio fazer uma matéria sobre a casa, por volta de 1963. Muita gente pedia para entrar, para ver a casa por dentro, mas por dentro ela era rebocada, não tinha vista de pedras. Só num quarto dava para ver alguns pedaços da parede de pedra.
Quando minha mãe morreu, em 1977, nós mexemos na casa. Rebocamos e construímos uma outra parte, com mais quatro cômodos. Onde era a casa de pedra, mora meu irmão caçula, Vanderlei.
Na época que eu era pequena, a gente criava cavalo, cabrito, porco e galinha na nossa casa. Nós dávamos ovo para os vizinhos e parentes. O que a gente gostava mesmo era de criar, ainda mais que o terreno era bem grande: 500 m² de lote. Depois, assim que começaram a construir a Avenida Pedro II, não pudemos criar mais animal nenhum, porque o lote diminuiu.
Nós tínhamos uma cisterna com seis metros de fundura e, quando chovia, a água chegava até a beirada, de modo que nem precisava puxar o cilindro para pegar água. Muitas pessoas vinham até minha casa buscar água, principalmente os moradores do bairro Monsenhor Messias.
Hoje, a casa é cercada por um muro alto, com um pequeno portão branco. O quintal ainda é espaçoso, com algumas árvores, mas o lote foi dividido entre eu e meu irmão, e duas casas novas - uma colada na outra - surgiram no lugar da casinha histórica.
O Jardim Montanhês ontem
No Jardim Montanhês havia muito morro. As ruas eram de chão e passava um córrego onde hoje é a Avenida Pedro II. Nem tinha ponte para a gente atravessar. Era preciso passar dentro do córrego.
Quando começou a abertura da Pedro II, nós achamos uma beleza. Começaram a arrumar o córrego primeiro, a fazer as galerias e, depois, abriram tudo direitinho. Arrumaram a Pedro II e depois as ruas laterais. Antes, para irmos até o centro da cidade, era preciso pegar um ônibus na rua Progresso com Rio Pomba. O bonde passava na rua Padre Eustáquio, mas ele era pior para pegar, pois só ia até a pracinha São Vicente e, de lá, para o centro. Depois da construção da avenida, isso ficou mais fácil.
Infância
Quando eu era criança aqui no bairro, havia poucas casas. O resto do Jardim Montanhês era tudo mato, com muito morro.
Na minha casa, minha mãe não deixava a gente ouvir conversa de adulto de jeito nenhum. Quando chegava alguém de fora, a gente tinha que se recolher nos quartos ou ficar do lado de fora brincando. Se a gente ouvisse a conversa e depois falasse qualquer coisa, apanhava muito. Eu e meus irmãos tínhamos nossas tarefas de casa. A minha era varrer o terreiro todo, cuidar da horta e arrumar a cozinha.
Meus pais eram todos católicos e frequentávamos a igreja do Padre Eustáquio, que era mais próxima da nossa casa. Além dessa igreja, havia a do convento das Carmelitas. Quando a gente assistia a missa no convento, a gente nem via as irmãs. Elas assistiam separado, não tinham contato com ninguém. Ainda hoje é assim, elas ficam fechadas lá dentro do convento. Só tem uma que atende, que acho que é a Irmã Superior, mas mesmo assim elas não têm liberdade para atender o povo.
Estudei na escola Professor Moraes, que ficava perto do campo de aviação. Para ir até lá, era preciso atravessar o córrego a pé, já que não tinha condução. Íamos eu e minhas colegas, pois meus irmãos estudavam em horários diferentes. Eu sempre tive muitas colegas, até porque era só eu de mulher na minha casa. Minhas colegas vinham na minha casa porque minha mãe não deixava eu ir na casa delas. Depois, cresci, fui estudar, aprendi a costurar, a bordar, a fazer crochê, tricô e salgados. Comecei a dar aula de costura e bordado na minha casa, para dez alunas em horários diferentes, que aprendiam na máquina de costura que ganhei de meu pai quando tinha 14 anos.
Eu costumava passear no Parque Municipal, quando minha mãe deixava eu ir com alguma pessoa conhecida. Mas outro tipo de lazer aqui no bairro não havia. A gente não teve infância e adolescência como hoje em dia o pessoal tem. Nossa infância era ficar mais dentro de casa. Não tinha televisão, só um toca discos e um rádio. A gente deitava cedo e levantava cedo também.
Meus irmãos pegavam muito no meu pé, já que eu era a única menina. Da igreja, tinha que ir para a casa. Se quisesse namorar, tinha que ser escondido. Então, eu fazia assim: não assistia a missa e ficava namorando na porta da igreja. Também saía com desculpa de ver casamento na igreja para namorar. Eu comecei a namorar com 19 anos. Meus pais não gostavam do rapaz, mas eu cheguei a ficar noiva. Depois, terminamos o noivado. Em seguida, minha mãe veio a falecer e então passei a cuidar do meu pai, por três anos até ele falecer. Além de cuidar dele, eu trabalhava fora numa loja de frangos. Era balconista e caixa. Fiquei nesse trabalho por 11 anos. De lá, fui trabalhar numa fábrica de costura, onde me tornei colega da sobrinha do meu marido, que viria a conhecer por intermédio dela. A fábrica ficava na rua Pará de Minas, e, um dia, fui passear em Nova Lima, onde ela morava. Lá, conheci o Rodrigo, com quem me casei.
Casamento
Quando conheci meu marido, eu tinha outro namorado. O engraçado é que se lembrava de mim da época que eu era criança e ele estava construindo a Avenida Pedro II. Eu tinha um cabelo muito comprido e passava pela avenida. Depois, quando ele me viu de novo, me reconheceu e me procurou. Eu já estava com 45 anos e, ele, 73. Acabei me casando com ele. A diferença de idade não atrapalhou em nada. Nossa convivência é muito boa. Estamos juntos há 13 anos.
Causos do Jardim Montanhês
O pessoal contava muito caso de assombração. Dizem que, de primeiro, as almas de outro mundo apareciam vestidas de noiva no bairro. Isso foi verdade, não é lenda. Uma mulher se aprontou para casar e, no dia do casamento, ela ficou sabendo que o noivo dela ia se casar com outra. Como ele se casou, ela se suicidou e, então, sua alma ficava vagando por aqui. Muita gente já viu a noiva no bairro todinho, em todas as esquinas. Ela só pedia para rezar, não pedia mais nada. Por causa disso, a gente não saía à noite, até porque era tudo escuro. Na minha casa, por exemplo, só fomos ter lâmpada depois de muito tempo. Era só lampião.
Outra vez, um homem bebeu muito e caiu da pontezinha que havia no córrego onde hoje é a Avenida Pedro II com Desembargador Tinoco. Ele bebeu a água suja do córrego e morreu de madrugada. Quando o acharam, ele estava todo inchado. Dizem que, quem passasse na ponte de madrugada, ouvia a voz dele pedindo socorro.
Depoimento cedido em 09/06/2005