Sou Francisca Natália da Silva. Vim de Oliveira (MG) para o Jardim Montanhês. O papai vendeu nossa casa lá, comprou um lote na vila, montou um barracão e nós viemos morar no Montanhês. Tinha pouca gente no bairro, umas pessoas mais antigas. Morava lá D. Marieta, mãe do compadre Orlando. Ela era italiana e tinha uns irmãos que também moravam ali. Ela morava na rua de cima. Depois da casa da Fizuca, tinha uma outra casa grande, depois, a casa da D. Marieta, que era muito antiga no bairro. Ela falava assim: "Isso aqui não vai nada adiante, não. Isso aqui é terreno dos escravos. Os escravos enterraram cabeça de burro aí e ninguém aqui vai ter sorte em nada, não." Ela era engraçada mesmo. Também moravam no bairro meus irmãos Ambrosina e Didi. Do outro lado, morava D. Geni, uma dona muito alegre. Às vezes, a gente estava triste, e D. Geni conversava com a gente. Era muito bom.
No Montanhês, tinha uma fonte, aqueles poços onde as donas lavavam roupa. Essa parte do lugar era chamada "mangueira" e ficava perto da casa do Sr. Manoel, que tinha uma horta. Quando nós nos mudamos para o Montanhês, a horta ia até a rua Bom Retiro, do outro lado. Tudo era horta do Sr. Manoel. Depois, foram povoando e vendendo lotes. Havia também o campinho, onde os meninos jogavam bola.
Tinha uma olaria, na esquina da rua Bom Retiro. Lá de casa, a gente avistava os homens fazendo tijolo. Tinha estrada na rua Alípio de Melo, onde passavam carros-de-boi e as pessoas que iam para a fazenda. Tinha porteira e um curral depois de onde, hoje, fica a BR. A gente ia buscar lenha lá. Não tinha a vila São José naquele tempo, não. Eu falava com as meninas assim: "Vamos dar uma volta no quarteirão?" A gente ia até o final da estrada, onde, hoje, é a rua Alípio de Melo.
Eu e minha irmã Izabel fugíamos lá de casa, escondidas do papai. As donas iam buscar lenhas e a gente ia pela estrada afora. Ia uma porção de moça com uma dona chamada D. Léia. Mas, lá em casa, a gente não precisava comprar lenha. A gente ia conversando e levava um saquinho para apanhar coco, enquanto as donas iam apanhar lenha. De vez em quando, os donos do terreno vinham a cavalo com uma cachorrada atrás. A gente tinha que correr e passar debaixo da cerca. As donas com feixe de lenha andavam apertadas. Eles não gostavam que pegassem lenha, não. Eles eram muito ruins. Dizem que o coronel era muito mal. As lenheiras contavam o que ele fazia.
No Montanhês, era bom. Tinha o sobrado e uma estradinha que ia até a capela, onde aconteciam umas festinhas no Mês de Maria. Começaram a fazer muita coisa no campo de aviação. Quando eles foram construir o campo, faziam um poeirão, uma coisa horrorosa. Meu filho Fernando teve até pneumonia. Ele tinha quatro anos e estava fraco de uma gripe. Eu fui à casa da Ambrosina com ele. Quando estava voltando, saí com ele no colo. De repente, veio uma ventania, aquela poeirada. Fernando respirou aquilo e teve pneumonia dupla. Levei o menino no Dr. Zé Roque, que tinha pouco tempo que estava no bairro Padre Eustáquio. Ele falou com uma voz rouca: "Está com pneumonia dupla!" Levei um susto! Meu menino nunca teve isso, não. O médico era novato naquele tempo e receitou penicilina de três em três horas. O Fernando tomou a injeção aplicada pela Dona Alaíde, que passou a noite lá em casa. O menino não comia nada. Estava com um febrão, deitadinho de bruço. Depois de um tempo, ele se sentou na cama e falou: "Mãe, eu quero café!" Fiquei muito alegre.
Família
Minha família era toda de músico. O Otávio tocava bandolim. Tocava muito bem. Depois, ele ficou perturbado e desmanchou o bandolim. Eu tocava, mas tocava pouco, na época que a gente morava em Oliveira. Minha professora de bandolim foi embora de Oliveira, não me lembro. Nos dias de sábado, os colegas do Otávio iam todos lá em casa. A gente trancava a porta e ficava tudo numa sala: violino, violão, flauta, cavaquinho, flautim. Didi tocava flautim que era uma beleza! Depois que mamãe morreu, tudo ficou sem graça. Ambrosina tinha vindo aqui para Belo Horizonte e nós ficamos sozinhos. Aí, meu pai resolveu vir para cá. Ele ficou muito triste com a morte da mamãe.
A mãe do meu pai era costureira na fazenda Mocassim. Naquele tempo, era um fazendão; tinha muitos escravos. Papai, na Abolição da Escravatura, estava com sete anos. Então, papai contava muito caso da fazenda, dos escravos. Dizia que o homem era ruim para os escravos que só vendo. Judiava mesmo. Às vezes, ele mandava dar melado para os escravos; eles comiam melado e saíam correndo para beber água, mas o feitor não deixava. Falava: "Negro que come melado não bebe água." Meu pai contava muita história de lá. Quando ele morreu, devia ter uns 70 e poucos anos. Eu não sabia ao certo a idade dele.