Sou Paulo Roberto da Silva Nascimento. Nasci no Jardim Montanhês, no dia 29 de novembro de 1954, às nove horas da noite, no fundo da casa da minha avó Ambrozina, que fica à rua Estevão de Oliveira, 47. Meus pais se casaram em 1953 e, desde então, passaram a morar num barracão nos fundos da casa dos meus avós. Ali, fui criado até os sete anos. Dos seis irmãos, cinco nasceram no Jardim Montanhês, todos com parteira.
Em 1962, meus pais se separaram e me mudei do bairro. Mas, mesmo morando fora do Jardim Montanhês, quando eu estava na adolescência, ia muito para a casa da minha avó, onde morava meu pai, e convivi muito com meus primos. No bairro havia duas tias minhas, a tia Izabel e a tia Chica, ambas irmãs da minha avó. Todo final de semana, eu ia para a casa dela. Se quisessem se esconder de mim, podiam ir para minha casa. Eu nunca estava lá!
Locutor
Meu pai era locutor nas festas no Jardim Montanhês. Ele se chamava Paulo e era uma pessoa muito alegre e comunicativa. Em todas as festas, ele colocava o som. Nas festas juninas, muitas vezes ele representava o padre e fazia um monte de palhaçadas. Era uma época muito gostosa e era meu pai quem encabeçava tudo. Na casa de meu avô tinha um toca-discos de rotação 78, uma radiola e vários discos. Então, ele montava o equipamento e fazia o som para o pessoal, as chamadas festas dançantes, que aconteciam na casa dele mesmo, na sala ou na copa. Meu pai comandava tudo, colocando os discos. Quando era matinê, minha avó fazia salgadinhos para servir para o pessoal, que fazia "vaquinhas" para comprar bebida. Eram só amigos que participavam. Muitas vezes, nem precisava convidar. O pessoal mesmo avisava que ia para a casa da minha avó, chegavam e dançavam. Nessa época, eu era pequeno, frequentava essas festas e ficava observando as pessoas dançando. Quando surgiu o cigarro com filtro, eu adorava catar os filtros na sala, durante as festas, e fazia coleção, porque achava aquilo bonitinho.
Papai sempre trabalhou na área de calçados. Era sapateiro, montador, especialista em calçados de mulher e fazia tudo manual naquela época. Era cada obra de arte fantástica... Hoje, é tudo industrializado. No início de sua profissão, ele trabalhava nas muitas fábricas que havia na cidade. Mas, com o tempo, elas foram diminuindo e ele acabou fazendo os sapatos em casa, trabalhando por conta própria. Era uma fabriquetazinha só dele. Ele era empregado dele mesmo: ele cortava o couro, montava, fazia o sapato e vendia na zona sul. Minha avó sempre tinha muitos contatos e levava para as madames daquela região.
Só no final da adolescência que eu passei a conhecer melhor meu pai, a ter mais contato com ele. Eu me casei aos 21 anos e, nesse período, a gente passou a ter um contato maior. Todo domingo meu pai ia para minha casa e a gente ia para o boteco tomar uma cervejinha juntos. Meu pai faleceu novo, com 52 anos.
Música
Na época da Jovem Guarda, havia um cantor chamado Ademar Dutra, que era de Aimorés (MG). Eu e meus primos achávamos que sabíamos cantar e, todo sábado à noite, a gente saía pelas ruas do bairro, sem calçamento, cantando. A gente chegava em casa vermelho de poeira. Também costumava fazer serenata para as meninas, o que causava rivalidade com outras turmas de meninos. A gente então brigava, apanhava - eram rixas normais.
O gosto por música deve estar no sangue. Meu avô tinha muitos discos, meu pai colocava o som nas festas e, hoje, meu filho caçula toca violão, baixo, guitarra e teclado. Na família da minha esposa também tem vários músicos. A música persegue a gente.
A minha avó também era muito festeira e fazia doces e salgados. Ela tinha contato direto com o povão, era uma líder comunitária. Era ela quem arrumava emprego em casas de família para as meninas do bairro, quando elas tinham 14 ou 15 anos.
No mês de maio havia muita coroação. Assim que terminava a Semana Santa, começavam as festas da Igreja e minha avó ensaiava as meninas para coroar, durante o mês de Maria.
Infância
Eu brinquei muito de futebol no bairro, a famosa "peladinha". Também gostava de ver os aviões e sempre aconteciam acidentes. Lembro-me de uma vez que eu estava na esquina na rua Moema, em um campinho, jogando bola e, de repente, veio um teco-teco com dois pilotos, fazendo sinal para a gente sair do campo. Cada um dos meninos foi para um lado e o avião caiu de bico. Morreram os dois pilotos. Isso foi por volta de 1965. Demorou cerca de dois dias para a aeronáutica tirar o avião do lugar, mas os corpos foram retirados imediatamente. Isso marcou minha vida. Depois disso, ficou perigoso jogar bola.
Eu frequentava muito o campo do Palmeiras, que era perto da casa da minha avó. Ela fazia salgados como empadinha e pastel, e a gente vendia para o pessoal que ia assistir aos jogos. Minha avó tinha um forno a lenha no quintal. A boca do forno era um semicírculo, onde se colocava a lenha e, por dentro, ele era feito de material refratário, para conservar o calor. Nele, ela assava muita empadinha, roscas e pães.
A casa dos meus avós era num terreno que correspondia a dois lotes. Tinha um quintal muito grande, sem contar os lotes vizinhos. Eram todos terrenos baldios, onde a gente brincava. Dois deles viraram campinhos de futebol. Certa noite, eu quebrei um vidro de leite de magnésio, que era grosso e azul, e joguei os cacos no gramado, onde minha mãe colocava roupas para quarar, em vez de jogar no lixo. No dia seguinte, eu e um primo meu estávamos passando no gramado quando pisei em cima dos cacos de vidro. Deu um corte enorme no meu calcanhar. Tenho a cicatriz até hoje. Depois que tinha me cortado, meu avô capinou toda a parte do lote até achar o que tinha feito o corte. Quando minha mãe viu que era o vidro do leite de magnésio, tomei uma surra. A prova do crime estava lá.
Apelidos
Meu pai tinha apelido de "Paulim" e eu acabei tendo um apelido também. Meu nome é Paulo Roberto, mas como meu pai era Paulo, então o pessoal me chamava de Roberto. Na família da minha mãe, me chamavam de "Robertim", apelido que diminuiu e virou "Betim". Engraçado foi quando entrei para o primeiro ano do grupo. Tomei o maior susto quando a professora me chamou de Paulo. Tinha me esquecido de que eu me chamava Paulo, porque todo o mundo me chamava de "Betim".
Escola
Estudei um semestre no Eliseu Laborne e Vale, que ficava na rua Alípio de Melo. Eu tinha que voltar a pé para casa, no bairro Padre Eustáquio, onde morei por um tempo com uma tia. No Jardim Montanhês havia muito mato. Era como se estivesse em uma roça. Então, para ir para a escola, a gente passava por uma trilha no mato. Nessa época, aconteciam coisas engraçadas quando eu "matava" aula. A gente costumava ir nas terras do Sr. Manoel, que era perto da casa da minha avó. No quintal dele, havia muita goiaba, gabiroba e outras frutas. Eu adorava goiaba. Então, nós íamos para lá e roubávamos goiaba, tomate e até chuchu na horta dele, que era toda irrigada com a água do córrego que havia onde hoje é a avenida Pedro II. Era coisa de criança, traquinagem mesmo, mas era gostoso.
Quase chegando no bairro Padre Eustáquio, havia eucaliptos na terra onde moravam uns alemães, que tinham um criatório de abelhas. Eles vieram para o Brasil na época da II Guerra Mundial e eram muito amigos da minha avó. Um dia, eu e meu primo Henrique estávamos matando passarinho com bodoque nos eucaliptos dos alemães. De repente, Henrique veio correndo porque a pedra desceu e caiu em cima de uma casa de abelha. As abelhas juntaram nele e ele ficou com o rosto todo inchado, igual a um chinesinho. Nessa Casa de Abelhas, a gente costumava comprar mel. Havia uma maquininha que enchia o potinho de mel. Era só tocar a campainha que a porta abria automaticamente. Era moderno demais.
Personagens
Havia no bairro uma senhora chamada D. Geralda, que era cartomante e devota de Santo Antônio. Quando meus pais se separaram, ela fez de tudo para que eles voltassem, mas o máximo que ela conseguiu foi levar a gente para passar o final de semana com o papai. Já foi alguma coisa. Tenho muita saudade dela. Não sei se ela é viva ainda.
Trabalho
Meu primeiro emprego foi no dia 1º de abril de 1973 - "Dia da Mentira". Ninguém acreditou que eu tinha arrumado trabalho. Pensaram que era mentira. Fui trabalhar em uma companhia de seguros, onde fiquei por três anos. Havia feito um curso de auxiliar de escritório, porque eu sempre gostei dessa área administrativa e financeira. Ali, fiquei até 1976, quando passei a trabalhar numa empresa de telefonia, onde fiquei até 1980. Nesse ano, passei num concurso em um banco, ficando até 1986. Nos últimos dois anos, passei a morar em Itaíba (PE), por causa do trabalho. Minha esposa e meus filhos foram para lá, ficar comigo. Minha filha teve hepatite e teve que vir para Belo Horizonte, quase morta. Se não fosse a medicina daqui, ela teria ido embora. Com isso, percebi que não estava dando certo não só para mim, mas para minha família também. Voltei para Belo Horizonte. Depois, me separei, morei em várias cidades e agora moro com minha mãe, na capital mineira mesmo.
Saudades
Da varanda da casa da minha tia, a gente avistava uma árvore, pau-de-óleo, que havia no morro, no horizonte. Ela ficava no bairro onde hoje é o Jardim Alvorada. Era uma árvore vista de todos os cantos de Belo Horizonte, porque era muito alta. Hoje, em seu lugar, tem uma caixa d'água. Cortaram a árvore e colocaram uma caixa d'água.
Eu sinto muita falta do Jardim Montanhês. O bairro era bonito demais. Aos domingos, muitos paraquedistas saltavam e, volta e meia, um camarada acabava caindo perto da casa da minha avó, o que era muito engraçado.
Depois que me mudei do Jardim Montanhês, o bairro mudou muito. Hoje, qualquer coisa que alguém esteja precisando, encontra na Av. Pedro II. A região virou uma área de ferro-velho. Qualquer pecinha para carro, dá para encontrar naquela região.
Quando chovia no bairro, na época que eu era pequeno, descia uma enxurrada com barro. Hoje, está tudo impermeabilizado, só tem asfalto. Mas o Jardim Montanhês é minha raiz, é de onde a gente veio. Não adianta passar asfalto, cimentar, porque a gente continua preso lá.