Outra lembrança dessa época que a gente tinha é que em frente a nossa casa tinha a barraca dos vicentinos. Então tinha autofalante, tinha barraquinhas, tinha muito evento, creio que toda semana, e ficava música até altas horas... Isso é uma lembrança que eu tenho dessa primeira parte. Depois nós mudamos para o Padre Eustáquio, aí eu fiquei lá até uns quatorze, quinze anos, e voltamos novamente para o Jardim Montanhês, mudamos para o mesmo lugar na rua Bom Retiro. Essa foi a melhor fase, que foi a fase de adolescência onde a gente conheceu a turma, tinha muitos amigos, o Osias se tornou amigo, o Nelsinho, o Letinho que era da rua, e a partir dali foi nascendo um grupo muito interessante, muito ligado, até surgir o grupo de jovens, que é uma coisa que aconteceu mais para frente, se não me engano 65, 66, 67.
Acontecia de ter vários grupos no bairro, em vários locais. O grupo de jovens, eu acredito que ele surgiu, a partir do momento que a Terezinha Renna mudou para o Jardim Montanhês e teve algum envolvimento lá na igreja e começaram a convidar o pessoal para fazer reuniões. No inicio as reuniões eram feitas nas casas, ora na casa de um, ora na casa de outro, antes de ter o salão paroquial. Com a construção do salão paroquial, as reuniões passaram a ser todas as semanas no salão paroquial. Nas reuniões todo mundo dava palpite, falam sobre relacionamentos, falavam sobre sexo, falavam sobre as esperanças que cada um tinha, de desenvolvimento, de progresso, eram reuniões formadoras de opiniões. Nessas reuniões a gente não tinha a presença de um padre, mas tinha a presença de alguns seminaristas que moravam lá. Então eles se tornaram muito mais amigos do que pessoas que estavam liderando a gente, eles não tinham uma liderança direta, eles eram, como se fossem companheiros mesmo. Eles tinham mais ou menos a mesma idade. Era o Cires, o Pedro, e esqueci o nome do outro.
A turma era bastante mobilizada e o grupo chegou a ter, acredito, umas cinquenta ou mais pessoas, então, por exemplo, tinha muita atividade com o público, tipo, “Horas Dançantes”, que eram feitas nas casas das pessoas, quer dizer, cada semana era na casa de um. Não tinha bebida alcoólica normalmente, tinha ponche, não tinha salgadinho, música, então era ponche, eventualmente alguma coisa de comer. Tinham excursões, a gente fez algumas excursões, a gente foi em Jaboticatubas, ia no Sesi, fizemos uma caminhada para Pedro Leopoldo, para Lagoa dos Mares, tinha algum evento mais pesado assim, que nós fizemos no salão paroquial, mais elaborado, com mais pessoas, apresentação de teatro. Teve jogral, algumas apresentações como se fosse concurso musical e algum evento mesmo de festa no salão. Teve uma festa que mobilizou muita gente, que foi a Festa da Sapucaia, saíram turmas buscando ao redor da Lagoa da Pampulha, porque do Jardim Montanhês para lá iam a pé pela BR e pelo Engenho Nogueira, pela estrada do Engenho Nogueira. Então, o pessoal ia e apanhava a sapucaia e cada mesa foi decorada com uma sapucaia. Então, esse tipo de atividade era realizada, fora essas atividades de lazer, teve algumas atividades também que se juntaram grupos menores, por exemplo, para construir casa de pau a pique, para fechar porão de casa onde viviam pessoas mais humildes lá no São José. Eu me lembro de duas, um fechamento, e duas que foram feitas de pau a pique, que teve adultos, porque a gente mesmo não sabia e a gente estava ajudando, nós fizemos um mutirão para construir essas casas de pau a pique. Nesse fechamento de porão tinha uma senhora, o marido e três filhos menores, e duas dessas filhas eram subnutridas, uma delas foi acolhida pela Dôra e outra acolhida pela família da Terezinha Renna. Essa que foi para a casa da Dôra, por exemplo, devia ter uns três anos, mas ainda não falava, não caminhava, então, foi praticamente através dela é que ela conseguiu adquirir peso, conseguiu sobreviver mesmo. Uma delas chamava Margareth e a que ficou na casa da Terezinha eu não me lembro mais o nome. A que ficou na casa da Terezinha ficou lá até casar e a da casa da Dôra ficou até tomar um pé, uns três, quatro anos, acredito.
O bairro era bastante humilde, bem pobre, então, eu acredito que a maioria daqueles grupinhos não tinham muita perspectiva não, quer dizer, não tinha violência, mas a gente não sabe onde é que chegaria aquele pessoal. Eram pessoas de família, tinham pai, tinham mãe, tinham um modelo, mas não tinham muita perspectiva, eu não sentia isso na turma não. Então, o que aconteceu, com o grupo de jovens, e principalmente com o Gavi, com aquela orientação que a gente foi adquirindo, eu acho que a gente foi amadurecendo, foi colocando na cabeça que a gente não era só aquilo, não era só aquele grupinho, não eram só aqueles momentos, que a gente poderia trilhar um caminho melhor, ter uma perspectiva melhor, maior, quer dizer, não é o fato de ser pobre que tinha que ser pobre a vida inteira. Tinha que estudar, tinha que progredir, quer dizer, tinha que buscar um objetivo maior na vida. Na minha vida isso foi muito importante, porque, por exemplo, eu era o mais velho de uma família de sete pessoas, quer dizer, poucas condições, o pai e a mãe não tinham muita condição e eu teria que buscar isso, porque se tivesse buscado da forma errada, de repente não teria chegado onde a gente chegou hoje, que não é muito, mas pelo menos é digno.
A maior liderança, ou a mais expressiva, ou a mais carismática, vamos dizer assim, era a da Terezinha, ela era uma pessoa muito dinâmica, muito extrovertida, e ela tinha um diferencial para a época. Então, por exemplo, o Osias era um líder, o Osmar de alguma forma era um líder, o Danilo, que era do São Geraldo acabou adotando o grupo, ele era um líder, mas o líder mais expressivo, mais carismático era a Terezinha. Ela nem era muito mais velha, mas parecia pela maturidade, por esse diferencial que ela tinha junto com o grupo. Por exemplo, o Carlos Vitor, que depois entrou no grupo era uma liderança, mas não tinha o mesmo carisma que ela tinha. De repente ele tinha mais conhecimento, era mais maduro, era mais velho, mas ele não tinha o mesmo carisma que ela. As irmãs da Terezinha eram todas simpáticas, todas agradáveis, mas não tinham o carisma de liderança que ela tinha.
A Dôra, por exemplo, era outra pessoa do grupo. Ela não era uma líder, era uma pessoa carismática, uma pessoa muito simpática, sorridente. O Osias era um camarada que escrevia, então a liderança dele estava através disso, nessa capacidade de escrever, de tocar violão. Quer dizer, muitas pessoas se juntavam a volta dele em função disso, quer dizer, até uma admiração. O Eugênio que participou também de alguma forma do grupo, também tinha a capacidade de escrever. Então eram lideranças.
Na época eu escrevi algumas poesias, tenho até um livro, tenho algumas poesias feitas, mas o que acontece, eu era um camarada mais descontraído, mais alegre e para eu escrever eu tinha que ficar assim mais contido, na fossa, as vezes tomava uma cervejinha para chegar a inspiração, então, com o passar do tempo eu senti que essa não era a minha praia, quer dizer, se eu pudesse escrever alegre, eu acho que eu teria continuado, mas como eu tinha que ficar um pouquinho triste, um pouquinho na fossa, eu acabei abandonando essa parte de escrita, quer dizer, eu tenho facilidade de falar, de escrever, mas não poesia como eu fiz naquela época. Na época foi importante, foi um diferencial, porque na época você trocava figurinha, trocava poesias, mas compor música nunca consegui.Uma outra característica que eu tinha na época era desenhar, desenhava bem, mas também não dei sequência.
O grupo acabou em 68, 69, por interferência, digamos assim, da igreja. O grupo se mobilizava com várias pessoas, se reunia todos os fins de semana, tinha alguns seminaristas que participavam. Eu acho que esse relacionamento do grupo externo com os seminaristas, eu acho que em algum momento isso foi considerado meio perigoso, então, o padre da época, o padre Valdo, ele tentou puxar essa turma do Gav para dentro da igreja, mas sob a orientação dele, quer dizer, uma orientação mais arcaica, mais fechada, mais rígida, e isso não deu certo porque o grupo já tinha um espírito mais aberto. Não que a religião e a fé não fossem importantes. Tanto é que em todas as reuniões Cristo era um modelo. Era um modelo de perfeição que a gente tinha que seguir, mas do jeito que eles tentaram puxar a gente para perto, não teve jeito. Acho que eles não tiveram a percepção ou a capacidade de entrar no meio da turma e buscar essa turma com a qualidade, buscando o que essa turma tinha de melhor e tentaram podar realmente, então, o grupo acabou a partir daí, foi minando, foi dificultando, foi reduzindo as reuniões e eu me lembro que em uma das últimas reuniões que eu participei, foi com o Pierre e com algumas outras pessoas que eu não me lembro agora quem eram, e que eles tentaram que essa equipe que eram os líderes, o Osmar, o Osias, Nelsinho e outros, que essas pessoas se integrassem dentro da igreja e que trabalhassem segundo a orientação deles. Eu lembro bem que a pá de cal nesse grupo foi uma frase que o Pierre falou: “vocês tem que tentar levar esse grupo adiante, porque se vocês não tentarem, vocês não conseguirão ser mais nada na vida”. Então eu me lembro que terminou a reunião com um clima muito ruim, e nós não nos encontramos mais, a partir dessa época.
Depois disso eu perdi completamente o contato, mudei o rumo, mudei de bairro digamos, mudei de interesses. Fizemos um encontro algum tempo depois, não me lembro a data. Foi uma tentativa mobilizada pela Dora, de reencontrar o pessoal que participava do grupo, eu até fiz uma mensagem, mas aí todo mundo já estava casado. O encontro foi num período de férias, mas alguns participaram. Foi 15 de julho de 1995. Eu não me lembro bem, mas acredito que tenha ido uns trinta casais, mais ou menos.
Agora, o que eu acho mais interessante no grupo é que ele era um grupo muito democrático, quer dizer, a diferença social, ou a diferença cultural não interferia nos componentes do grupo. As pessoas mais líderes não discriminavam as outras. Tanto que, quando tinha algum evento, ou algum passeio, o pessoal saía mobilizando todo mundo, independente se o camarada era mais inteligente, menos inteligente, mais pobre, menos pobre, se tinha alguma qualidade que destacasse, ou não, o cara escreve vai, não escreve, não vai, não tinha isso não, era um grupo realmente muito democrático, e mobilizava muita gente. Eu acho que esse foi o maior sucesso do grupo em todo o período que ele esteve presente no bairro.
O bairro era pobre, pequeno, se a comunidade, se as famílias não adotassem aqueles rapazes e aquelas moças, eles poderiam ir para outros bairros, poderiam seguir outros caminhos. Então essa integração entre o jovem e as famílias foi o mais importante a nível de bairro. Todos os jovens lá iam na casa de um ou de outro, ou iam na casa de todo mundo. Então acabou tendo essa relação, porque o que acontece, sempre há aquela distância entre o jovem e o adulto, e essa distância naquela época poderia não ser benéfica. Eu acho que esse foi o maior benefício para o bairro, essa integração de jovem e de adultos, independente de que família fosse, a gente frequentava a casa de todo mundo.
Hoje eu acho que o Jardim Montanhês se descaracterizou muito, hoje eu moro no Padre Eustáquio, mas o que sobrou do Montanhês hoje? Pouca coisa. Tem o campo de aviação que não deixa de desenvolver, tem a Pedro II que acabou sendo aberta. Na Pedro II tinha três campos e era uma área que tinha um córrego, então era como se fosse uma área de lazer e hoje é a Pedro II. Tem a Padre Eustáquio e a rua Vila Rica, que encurtou essa parte do Jardim Montanhês, e a outra parte da BR, que também era do Jardim Montanhês, que tem aquela favela ali, que ela também vai sair, vai entrar a avenida Pedro II, então, quer dizer, o bairro ficou bem curto, ficou bem pequeno, ficou bem descaracterizado.
Depoimento cedido em 10/12/2004