Nasci no Jardim Montanhês, no dia 1º de Maio de 1965. Um ano depois do Golpe de 1964. Primeiro de Maio, dia do trabalhador e, lá em casa, uma data muito significativa. Papai sempre foi sindicalista, já morava no bairro há muito tempo. Já deve ter uns 40 e poucos anos que mora lá. Hoje ele fica mais em Anchieta, agora está na praia, fica mais lá.
Moramos na Rua Alípio de Melo, 428. Mamãe brincava: 4 x 2 = 8. Minha mãe era professora e tinha essas bobagens assim. Nasci lá e fui criado no Jardim Montanhês, no tempo que não tinha Pedro II, no tempo que o Rio Arrudas passava por lá. A BR, o Anel era uma pista só, daquelas pequeninas, de carreteiro, de rodovia comum, tudo. Meu primeiro filho nasceu lá.
Meu pai era sindicalista, bancário muitos anos. Me lembro da gente pegando ônibus no dia 1º de Maio, eu novinho, e ia para a comemoração do 1º de Maio na Praça da Estação. Quando eu poderia imaginar que, mais de trinta anos depois, eu iria morar aqui num lugar que dá quase para ver a estação. Belo Horizonte cresceu tanto, Montanhês mudou tanto.
Lá tinha o campo Palmeiras, a gente jogava bola lá. Tem casos e mais casos. Um dia a gente estava jogando bola no Palmeiras quando, de repente, um avião passou ... O Montanhês fica em frente ao aeroporto Carlos Prates. Minha casa ficava em frente e já caiu paraquedas no abacateiro lá de casa várias vezes. A gente estava jogando bola no campo e passou um avião baixinho, deu a volta e o piloto falou: “Sai, sai, sai... “ Nós saímos, o avião deu a volta, pousou no campo, derrubou a trave e entrou dentro da casa de um colega nosso. Ele estava jogando bola com a gente. A mãe dele estava tomando banho e saiu pelada da casa. Aquilo foi uma loucura tão grande. O avião bateu na casa, quebrou a trave do campo, porque a casa ficava atrás do gol do Palmeiras. Não chegou a derrubar a parede não, mas o avião deu uma trombada boa. Isso tem, no mínimo, uns 29 anos.
Lá tinha muito campo de futebol. Papai tinha um time de futebol, não era da minha época. Foi um time que papai fez para meu irmão mais velho, que é 14 anos mais velho que eu, o Eugênio, que é parceiro do Osias de música. O time chamava-se Titanus e só jogava gente da região. Chegou a jogar contra o juvenil do Cruzeiro e perdeu de dez a zero. Tinha o campo de lá, de Minas, dos Altos e tinha os campinhos, muitos campinhos na Grota.
Minha história com o Montanhês é assim: eu cresci, me formei em jornalismo muito cedo, com 20 anos. Quando eu estudava jornalismo na PUC, eu ia à pé para a PUC. Não tinha grana e eu ia à pé e voltava com a Cristiane Antunha, jornalista da Alvorada e atriz. Ela me dava carona de volta. Ela tinha carro e me deixava toda noite que eu ia para casa, me deixava na porta de casa. Ela morava na Pampulha, pegava o Anel, passava e me deixava em casa.
Então, a primeira vez que saí para morar em outro lugar foi no Rio de Janeiro, onde eu fiquei uns três meses e meio. Tinha uns 17 anos e fui para lá – estudava na PUC e conversei com os professores e eles me deixaram ir para o Rio, mandava os trabalhos de lá. Essa foi a primeira vez que eu saí do Montanhês. Fui fazer cinema. Fiz o Beth Balanço e o comecinho de um, fim do outro; Rio Babilônia... tinha um amigo e eu fui ser estagiário.
Depois, quando me formei, trabalhava na Globo em Uberlândia. Mudei-me para lá e fiquei seis meses. Lá, eu fiquei diabético, aí voltei para o Montanhês. Depois me casei e continuei morando no Montanhês, num barracão de fundo do meu pai, meu filho nasceu lá, depois fui morar no Caiçara, depois na Espanha e me separei definitivamente e sempre morei no centro. Antes de separar definitivamente, fui morar perto da PUC, comprei um apto lá. Depois fui para Espanha de novo e depois voltei, por causa da saúde do meu pai e da minha mãe, antes de vir morar nesse apartamento aqui, fiquei com eles uns três meses. Então foi a última vez que eu morei no Jardim Montanhês e já fazem uns dois anos. Eu gosto muito de lá. A gente tem uma casa legal lá, uma casa simples.
Hoje moram lá só meu pai e minha mãe. Somos quatro: tem o Eugênio, que tem 53, Denise, que tem vai fazer 50, depois eu, com 39 e Yara que é um ano mais nova que eu. Eu e o Eugênio fomos os que mais moraram lá. Curioso, a primeira filha do Eugênio, a primeira neta da família, nasceu no Montanhês, assim como o primeiro neto da família, meu filho.
No Montanhês, a gente pegava passarinho, foi uma infância muito boa. É um lugar tranquilo. A gente andava de bicicleta. O irmão da Mirinha, mulher do meu irmão – o Eugênio casou no bairro – esse irmão dela hoje é riquíssimo, um dos donos da Golden Cross. A gente pegava bicicleta de aluguel, subia no campo de aviação, soltava a bicicleta lá de cima e ela ia rolando lá em baixo, sozinha.
Uma vez eu tomei um tombo de bicicleta e o dedão da mão entrou para dentro. O sogro do meu irmão puxou o dedo e voltou para o lugar. O Montanhês era isso. Era andar de bicicleta e jogar futebol. E jogo de botão também. Lá em casa tinha campeonatos de jogo de botão. Era uma coisa impressionante. E mato também, pegar passarinho. Montanhês era uma roça. Tinha aquela grota onde a gente entrava.
Eu lembro da casa de abelhas abandonada. Isso é da época do Osias. Fabricava mel. Na minha época estava abandonada. A gente tinha medo de entrar dentro dela. Eu lembro, era uma casa onde hoje é a Pedro II.
Não me lembro quando começou a construir a Pedro II não, mas ficou construindo por muito tempo. Agora é que tem as duas pistas, mas aquilo demorou muito para construir. Para se ter uma ideia, eu estudava no Pitágoras aqui. Para ir para o Pitágoras, eu e o Paulo Sávio, que era um colega meu que também estudava lá, ele morava um pouquinho para lá de casa, a gente andava à pé para pegar um ônibus que deixava a gente mais perto, até a Avenida do Canal, todo dia cedinho. Lá o ônibus era a linha 10. Um motorista desse ônibus, da linha 10, era o Sossego. Ele andava devagarinho com o ônibus, era uma pessoa mansa, boa que você nem acredita. Ele morava no Alvorada, atrás do Montanhês. Um dia, ele matou o filho dele de 40 anos, problema de droga com o filho. O Sossego é um personagem do Montanhês. Ele foi motorista da linha de ônibus que chamava “Jardim Montanhês”, hoje não existe uma linha assim. Era o ônibus 10, tinha placa em cima e ele dirigia sempre o melhor carro. Era o motorista mais respeitado. Ele matou o filho dele e não foi preso. As pessoas viam que o filho o ameaçava o tempo inteiro, batia na mãe, batia nele. Um dia ele não aguentou. O Sossego era um cara bacana.
Eu escrevo também, mas não tenho nada sobre o Montanhês. Nunca escrevi nada que tivesse como referência direta. Mas indireta, tem uma descrição de casa que é a minha casa. Influenciou tudo. A televisão era preta e branca, não tinha internet. O que você faz? Na minha casa, tinham quatro mangueiras, um pé de jabuticaba, dois pés de abacates, três pés de mexerica... era uma casa com quatro mangueiras e muito livro, e bola de futebol e jogo de botão. Era isso. Meu filho hoje é internet, o mundo é completamente diferente. Não sei nem se ele é fechado. A gente fica hoje com esse negócio de saudosismo, que o povo não lê, eu acho que não tenho saudosismo das coisas não. Mas era muito diferente. E fico imaginando que na época do meu irmão, para ele ter essa referência toda – ele tem uma música lindíssima sobre o Jardim Montanhês – devia ser muito mais diferente ainda.
Hoje no Montanhês não tem jeito de fazer nada. Se for jogar bola, não tem como. Não tem nada. É perigoso. Outro dia eu cheguei lá no horário de 18h30, saí da PUC e passei lá para ver papai. Caramba! Que movimento estava a rua Alípio de Melo, minha rua. Ela é paralela à Pedro II e o pessoal para ir para o Anel, como a Pedro II fica muito cheia, eles entram por ela então fica pior que a Pedro II, porque é uma rua paralela à Pedro II. É uma rua de calçamento. É um bairro muito desleixado. A prefeitura nunca olhou muito. A Pedro II ficou anos para ser pavimentada. É um bairro que não tem muito cuidado. A minha rua, por exemplo, é uma das mais antigas. Era a principal do bairro e nunca foi asfaltada. Uma rua num bairro que não é tão longe. Se pegar o ônibus aqui na frente para ir lá para casa, não vai demorar 20 minutos para ir. Não é um lugar tão longe assim. E desleixado, esquecido, um bairro de trabalhador, de gente pacata, de dona de casa.
Atualmente o Jardim Montanhês está acabando. Acabou o meu Jardim Montanhês. As pessoas estão acabando, meu pai está velhinho, minha mãe tem Alzheimer, mamãe, se você falar com ela Jardim Montanhês, não lembra de nada. Então, por exemplo, o Jardim Montanhês da minha mãe acabou até na memória dela. Ela tem Alzheimer e mora lá. É uma pessoa lúcida em muitas coisas. Conversa, dá risada, mas se perguntar onde está, onde nasceu, onde morou, onde é aqui. Ela não sabe. O Montanhês dela já acabou com toda certeza.
O Jardim Montanhês é uma decadência. Belo Horizonte vive na decadência. O mundo é um mundo decadente em todos os sentidos. Se você pega um Iraque, no tempo em que eu vivia no Montanhês, num tempo que a Mendes Júnior construía rodovias no Iraque e se pega o Iraque hoje. Se pega os EUA dessa época de Jardim Montanhês e um EUA que hoje é vulnerável, o símbolo World Trade Center cair de uma hora para outra. O nosso mundo hoje é um mundo decadente. Viver é muito difícil e o mundo é muito difícil. Quando eu falo do meu Jardim Montanhês que acabou, acabou o sossego, a tranquilidade. Outro dia mesmo mataram um cara na lanchonete que tem lá na minha rua. Não estou falando que naquele tempo não acontecia isso. Já acontecia, mas hoje isso é comum. Hoje atrás do Jardim Montanhês tem uma favela que não tinha. A favela São José é um Deus nos acuda. É muita pobreza naqueles bairros todos ali para trás. O Alvorada mesmo, são bairros de pessoas muito pobres, que lutam com uma dificuldade danada. O Montanhês ainda é um lugar um pouco tranquilo, mas decadente. Mas é uma coisa do mundo, do país, do mundo.
E o Montanhês é isso. Sempre foi um bairro proletário. Eu imagino que se tivesse nascido no Santa Tereza, no Santo Antônio, um Osias, eu acho que, sinceramente, ele faria mais sucesso. Até pela teia de pessoas que ele ia conhecer. Mas não tenho essa onda não. Não acho que o Jardim Montanhês tem essa coisa cultural. São poucas pessoas, eu acho que tem gente que toca violão, gosta de cultura, todo bairro tem. Família como a minha, gente que gosta de teatro, literatura, música, todo bairro tem isso, não tem nada de privilégio no Montanhês. Pelo contrário, é um bairro proletário, de trabalhador. É uma coisa rara que, no Montanhês tenha nascido um Osias, que é um cara de uma cultura extraordinária. O Osias, filho de uma família simples, o pai, trabalhador braçal, e não é só o Osias não. O Cazinho, Olavo, mas anda no Jardim Montanhês. Bate de casa em casa, entra e pesquisa quantos livros tem na casa. Mesmo nas casas de gente nova, apartamentos do lado da minha casa tem um prédio, que é de uma família. É o povo mais ignorante que existe, nunca leram um livro. É um bairro que nem glamoroso é. Já foi, hoje não tem nenhum glamour. Nem consigo ver, a não ser na casa do meu pai, e mesmo assim por causa de saudosismo. Nem no aeroporto vejo mais. Antes era bacana. Não tenho essa onda de mineiridade. Acho que todo mundo merecia nascer no Luxemburgo, Santa Lúcia, Santo Antônio. Todo mundo tinha que nascer num bairro organizado, que a prefeitura cuidasse dele. Se acontecesse isso, não ia ter lugar pobre, não ia ter Jardim Montanhês, Taquaril. Eu fico de cara só de imaginar uma noite chovendo no Taquaril. O ser humano é para ser melhor tratado. É glamoroso na minha época ter que andar mais de dois quilômetros para pegar ônibus para ir para a escola. Eu preferia morar do lado da escola, num bairro mais perto. Preferia ter mais conforto. O ser humano se esquece que todas as coisas tem que estar a serviço dele.
Depoimento cedido em 16/06/2004