Sou Carlos Alberto de Freitas Carvalho. Nasci em 4 de setembro de 1944, no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte. Morei nesse bairro até os três anos de idade, quando nos mudamos para a rua Alípio de Melo, 672, no bairro Jardim Montanhês. Aos oito anos, fomos para casa própria no mesmo bairro, onde moro há 60 anos.
Minha infância foi estudar e cuidar dos afazeres domésticos. Minha mãe trabalhava fora, para ajudar em casa, e quem tomava conta dos meus irmãos era eu. Quando tinha algum tempo vago, eu brincava com meus amigos de soltar papagaio, de jogar bolinha de gude e de peão, além do futebol com bola de meia.
Futebol
Em janeiro de 1955, o time do Palmeiras foi fundado pelo Sr. Osmar. Eu era menino e até ajudei a construir o campo para o time, ao lado do córrego. Fizemos o campo com enxada e picareta, já que trator naquela época era difícil. Aproveitamos a grama do brejo e colocamos no campo.
Depois de fundado o time, entrei para o Infantil, com 12 anos. Aos 17 anos, fui para o primeiro quadro do Palmeiras, nem passei pelo Juvenil. Eu era o goleiro do time, que, em sua maioria, era formado por gente do bairro. Todos os domingos tinha partida. Quando chovia, dava enchente e o campo enchia de lama, não dando condições nenhuma de jogar. Então, a gente tinha que marcar o jogo fora, nos campos Inconfidência, Tremedal, Cachoeirinha, Juventus, Vasco ou Santanense.
Depois, joguei nos times Vasco da Gama, do bairro Pedro II, e Estrela Solitária, do bairro Jardim Montanhês, mas meu coração sempre foi palmeirense. O maior rival do Palmeiras era o Estrela Solitária. Eu era um bom goleiro, apesar de já ter tomado alguns gols, mas qual goleiro nunca levou gol? No jogo entre Palmeiras e Tremedal, nós ganhamos de um a zero. Eu fui considerado o melhor jogador em campo. Outro jogo que me marcou foi contra o Juvenil do Atlético, apesar de eu ser atleticano. Nesse jogo, tomei de seis a zero, mas acabei sendo chamado para treinar no Atlético. Fiz os treinos, mas fui colocado como lateral direito, e eu mal conhecia a posição. Acabei me machucando e saí de lá.
Aqui em Belo Horizonte, a gente disputava o campeonato do Departamento de Futebol Amador (DFA) e, com isso, rodava vários campos da cidade, como Cristina, Campos Altos, Canto de Minas, 15 de Novembro, Canadense, Belo Horizonte... Onde tinha jogo marcado, eu ia. Eu tinha um apelido na época do futebol: parafuso. Eu era conhecido como Carlos Parafuso. O apelido começou na época da escola. O pessoal começou a me chamar de Pará, depois de Para-choque, Para-lama, até chegar em Parafuso. Eu apelava e não adiantava. Então, resolvi aceitar. Agora eu não ligo mais. Aprendi que, quanto mais brigar, pior é.
Meu pai era técnico do Palmeiras. Ele era uma pessoa que passava respeito para a turma. Não tem como ensinar o cara a jogar bola, ele já nasce sabendo. Meu pai me falava o que eu tinha que fazer e eu fazia, normalmente. Nesse período que ele foi técnico, o vestiário do Palmeiras ficava num cômodo da minha casa. Desde pequeno, meu pai me incentivou a jogar futebol, até porque ele também foi jogador ponta esquerda do Juventus e do Palestra Itália, atual Cruzeiro. Ele sempre me levou nos campos, principalmente no Independência. Minha mãe nunca ia. Ela trabalhava a semana toda e tinha ainda os afazeres domésticos. Chegava no domingo, ela estava cansada.
Vitórias
Dos campeonatos que disputamos, fomos vice-campeões uma vez, pelo DFA. Mas já ganhamos muitos torneios sem expressão e muitos festivais que a gente era convidado para jogar. Ganhamos muitos troféus, mas o que ficou comigo foi o de quando o Palmeiras jogou contra o Engenho Nogueira, no campo Nova Era. Eu defendi um pênalti e quebrei o braço. Saí do posto de goleiro e fui para a linha, jogar assim mesmo. A partida estava em um a um. De repente, consegui chutar a bola e marcar o gol da vitória. Fui considerado o herói da partida. Eu acho que eu era um bom jogador mesmo. Até hoje, quando passo na rua, algumas pessoas mexem comigo. Outro dia, encontrei um menino que vendia chup-chup na época e me disse que eu jogava demais.
No meu tempo, só havia bons jogadores. O futebol era mais técnico, mais evoluído, não era esse futebol que se pratica hoje. O jogador sabia, tocava a bola de primeira. O Jininho era o melhor jogador do Palmeiras, na minha opinião.
Sempre que o time ganhava, não dava outra: era uma goleada no campo e uma golada no botequim. Geralmente, era nos bares do João Preto ou do Sr. Emílio. A gente arrecadava dinheiro entre os jogadores e todo o mundo bebia, sem confusão.
Uma época, entrou para o time um açougueiro, que era ruim de bola. Mas a gente acabava deixando ele jogar, porque ele levava carne para a comemoração. A cada vez, um cozinhava e, depois do jogo, a gente sentava no bar, bebia e comia o tira-gosto.
Depois de um tempo, quando fui ficando mais velho, passei a jogar no segundo quadro, que era melhor que o primeiro. A gente jogava contra eles e sempre ganhava. No dia 25 de dezembro, sempre havia o jogo dos "Feios" contra os "Bonitos". Nós éramos os “Feios” porque morávamos do outro lado da BR e sempre ganhávamos deles.
Derrotas
Na época do Palmeiras, eu me lembro de um jogo que me marcou muito: eu estava com o braço engessado e queria jogar num festival de qualquer jeito. Consegui uma camisa que disfarçava o gesso, para o juiz não ver, e entrei no campo contra o Urânia, um time da Cidade Industrial. Estava um a zero para nós, quando um cara chutou a bola do meio do campo e eu não consegui agarrar. A bola passou no meio das minhas pernas. Muita gente me xingou, mas, por sorte, um jogador fez o segundo gol e nós ganhamos a taça. Apesar do gol perdido, defendi muitas bolas com o braço engessado.
Depois disso, minha mãe me xingou que, se eu podia jogar futebol com o braço quebrado, eu podia também trabalhar. Fiquei com raiva, molhei o gesso e passei o canivete para tirá-lo.
Ídolos
Meus ídolos do futebol da época eram Ubaldo, centroavante do Atlético que fazia muitos gols, e Darío, o Dadá Maravilha. Eu não perdia um jogo do Atlético, era o maior piolho do Mineirão por causa dele. Eu cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Era um jogo contra o Cruzeiro e eles estavam em concentração num hotel. Conversei com o Darío e ele me falou que ia fazer um gol para mim e fez: Gol Raiz Quadrada. O Darío sempre dava nomes para os gols, como beija-flor, sutil, entre outros e, com isso, ele também recebia apelidos. Um exemplo foi quando o homem pisou na lua. Na hora que a Apolo 11 aterrissou, estava acontecendo um jogo no Mineirão e, no momento exato do pouso, Darío fez o quinto gol do Atlético contra o Internacional. O locutor disse: "Darío, Apolo 11!"
Nessa época do Mineirão, eu e minha turma íamos para o campo de carona. Os carros passavam na BR e eu dava sinal. Se o cara era cruzeirense, eu não falava nada. Ficava na minha e só ouvia: "vai ser um bom jogo hoje...". Mas, quando era atleticano, a gente ia conversando bem.
Festas
Para pagar a lavadeira dos uniformes, comprar bola e manter o time, a gente fazia muitas festas e rifas, além de cada um dar um pouco de dinheiro. Alguns bailes aconteciam numa escolinha, que tinha um galpão, e sempre vinha orquestra para tocar. Quem organizava era o Zé Costa. Eu gostava muito de participar e, quando não tinha orquestra ou algum artista, eu colocava meus discos no rádio da minha mãe e tomava conta do som. Tenho ainda vários discos antigos, relíquias mesmo, que tocam até hoje, como o "Românticos de Cuba", entre outros. Outros bailes bons aconteciam no Sparta Vôlei Clube, que ficava na Pedro II. Ali, até Assis Hall e seus Cometas já tocaram. Eu era um bom pé de valsa. Dançava bem e já cheguei a ganhar concurso de dança no Elite Clube.
Depois dessa fase de termos que pagar para jogar, conseguimos colocar o time Palmeiras como de utilidade pública e, então, passamos a receber uma verba representativa, que ajudava a manter o time.
Trabalho
Apesar de gostar muito do futebol, eu tinha que trabalhar fora. Futebol não era como hoje, não dava dinheiro e eu tinha que ajudar em casa. Com isso, muitas vezes eu não tinha tempo de treinar. Às seis horas da manhã, impreterivelmente, eu tinha que sair para o trabalho. Já trabalhei em metalúrgicas, como servente, ajudando meu pai, que era pedreiro, e, posteriormente, na Imprensa Oficial.
Batalhão
Quando fui servir ao Exército, minha mãe conseguiu que eu entrasse para a Polícia Militar. O Capitão Diniz fez um time de futebol do 5º Batalhão da PM e eu era goleiro. Jogamos várias partidas em cidades do interior de Minas, como Lafaiete, Barbacena, Carandaí e até mesmo em Divinópolis, no campo do Guarani. Foi nessa época que eu passei a treinar mais futebol, fiquei mais evoluído e com melhor forma física e técnica.
Casamento
Foi no futebol que conheci minha esposa. Casei-me há 30 anos com Ivani, que era da torcida organizada do Palmeiras, e com ela tive três filhos. Muitas moças eram da torcida e todas usavam uniforme com saia branca e blusa verde. Eu ia jogar bola e ela ficava mexendo comigo, batia palma. Eu me interessei e ela se interessou. Eu sempre fui muito tímido e foi muito difícil para mim chegar e conversar com a mãe dela, mas eu fui num dia que ela tinha ido passear com as meninas, no bairro Padre Eustáquio. Quando ela chegou, eu já tinha conversado com a mãe dela e ela pensou que ela fosse xingá-la, mas eu disse que não, que eu já tinha falado. Então, ela continuou indo ao jogo, mas a mãe dela só a deixava ir nos campos do Jardim Montanhês. Quando o jogo era fora do bairro, ela não ia.
Além do namoro no campo, a gente ia passear nos cinemas São Carlos e Progresso, nos bailes e, de vez em quando, tomava uma cerveja e comia um salgado num barzinho na cidade.
Hoje
Joguei futebol até os 34 anos, época que nasceu meu primeiro filho. Hoje, sou eu quem o acompanha nos jogos, já que ele faz parte do time do Cica. Quando ele era pequeno, eu o levava para assistir aos jogos na torcida do Atlético, mas ele puxou a mãe e é cruzeirense. Apesar de preferir que ele fosse atleticano, nunca falei sobre isso com ele, porque tenho que respeitar o direito de escolha dele.
Depoimento cedido em 01/06/2005