Ao tomar posse como presidente da República, em 1956, Juscelino Kubitschek parecia tornar o sonho de concretização da nova capital mais próximo. O discurso de JK embalava cada brasileiro e influenciava, para além dos campos político e econômico, a cena cultural do país. Em fins da década de 50, crescia no Brasil a produção de composições baseadas em um novo ritmo que, vagando entre o samba e o jazz americano, carregava letras sobre o cotidiano da classe média brasileira, em meio a palavras sussurradas, encadeadas por uma batida diferente, denominada, mais tarde, como Bossa Nova.
O movimento de constituição da Bossa Nova parecia refletir a urbanização do país. O novo estilo de compor e cantar, apesar de influenciado pelo samba, retirava o foco da música produzida nos morros, lançando os holofotes do cenário musical para a zona sul carioca. Esse movimento revelou diversos cantores e compositores, como Vinicius de Moraes e Tom Jobim, dupla que, em fevereiro de 1958, foi convidada por Juscelino Kubitschek a compor a “Sinfonia da Alvorada”, mais conhecida como “Sinfonia de Brasília”.
Na capa do LP, gravado em novembro de 1960, Vinícius de Morais fala sobre o pedido do amigo e então presidente: “A idéia de escrevermos uma Sinfonia celebrando Brasília não é nova. Em fevereiro de l958, eu acidentado num hospital de Petrópolis, conversei pela primeira vez com Antonio Carlos Jobim sôbre o assunto. Ainda no correr dêsse mesmo ano, alguns dos temas musicais aqui constantes já haviam sido compostos pelo jóvem Maestro. (...) Houve logo, é claro, quem falasse em obra ‘encomendada’ e outras tolices do gênero, o que feriu certas suscetibilidades de Jobim. E a tarefa ficou postergada para dias mais inteligentes.”
Capa do LP Sinfonia da Alvorada
Assim, a composição que versa sobre o processo de constituição da grandiosa e sonhada capital: Brasília, não foi realizada de imediato, devido não somente aos desentendimentos sobre o pedido de produção da sinfonia, mas, também, por causa das divergências que rondavam a construção da futura capital.
Para que a melodia deixasse o campo das ideias e fosse concretizada, uma longa trajetória ainda seria percorrida. Passado algum tempo, Juscelino, por intermédio do amigo Oscar Niemeyer, reiterou o pedido a Vinicius. Na ocasião, o arquiteto enfatizou o anseio do presidente em ter a composição pronta antes da inauguração de Brasília - prevista para 21 de abril de 1960. Mas a nova capital foi inaugurada sem o som dos acordes da sinfonia.
Na intenção de envolver os músicos em sua empreitada, Juscelino os convidou para que ficassem hospedados no “Catetinho”, em Brasília. “Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília afim de estruturar temas e poemas em contato humano com a cidade. Hóspedes do "Catetinho", hoje tombado como monumento histórico, olhávamos de nossa sala-de-trabalho - a mesma em que o Presidente Kubitschek assinou seus primeiros atos na nova capital - a silhueta quase sobrenatural da cidade na linha extrema do horizonte, recortada contra auroras e poentes de indizível beleza” .
Para que a sinfonia tomasse forma, um piano teve de ser levado para o “Catetinho”. Evento gravado na memória de Vinícius: “João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o "Catetinho", com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio.” Tom e Vinícius permaneceram 10 dias em Brasília, período em que muitos rostos de turistas surgiram à porta, em busca de informações sobre o andamento do trabalho desenvolvido pelos músicos, que, vez ou outra, reservavam um tempo para os passeios na cidade, onde se encontravam com os amigos pioneiros de Brasília: Oscar Niemeyer, José (Juca) Ferreira de Castro Chaves, João Milton Prates e João Milton Prates.
Na expectativa de que a composição estivesse pronta em setembro, a execução pública foi marcada para integrar as comemorações do 7 de setembro de 1960.“(...) de volta do meu pôsto em Montevidéu, em junho de l960, recebi uma telefonada de Brasília. Induzido por êsse querido amigo que é Oscar Niemeyer, o Presidente Kubitschek, também um velho amigo, convidava-nos para criar, com os técnicos da firma francesa ‘Clemanço’, especializada na matéria, um espetáculo ‘Son et Lumière’ para a Praça dos Três Poderes, à maneira dos que são feitos nos principais castelos francêses e em vários outros grandes monumentos do mundo, como a Acrópole, as Pirâmides e tantos mais, para fins de atração turística.”
Entretanto, mais uma vez, a sinfonia não pode ser executada, em decorrência dos altos custos cobrados pela empresa francesa Clemanço, responsável por fornecer a estrutura para a execução.
Gravada em novembro de 1960, no estúdio da Colúmbia, no Rio de Janeiro, a “Sinfonia da Alvorada”, só foi conhecida pelo grande público em 1966 , durante uma primeira audição na TV Excelsior de São Paulo. A sinfonia composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes é constituída por cinco partes: I O Planalto Deserto; II O Homem; III A Chegada dos Candangos; IV O Trabalho e a Construção; V Coral.
Informações técnicas:
Música e orquestra sinfônica sob regência de Antônio Carlos Jobim
Poesia: Vinícius de Moraes
LP 12" capa dupla, gravado em novembro de 1960, no estúdio da Colúmbia, no Rio de Janeiro.
Recitativo por Vinícius de Moraes, trechos com participação de Tom Jobim
Coro Dante Martinez , sob a direção de Roberto de Regina
Participação de Os Cariocas e Elizete Cardoso
Piano: Radamés Gnattali
Capa: Oscar Niemeyer
Fotografia: Franceschi
Engenheiro de som: Sergio Lara Campos
Tom e Vinícius na capa interna do LP
Letra de “Sinfonia da Alvorada”
O PLANALTO DESERTO
No principio era o ermo
Eram antigas solidões sem mágoa.
O altiplano, o infinito descampado
No princípio era o agreste:
O céu azul, a terra vermelho-pungente
E o verde triste do cerrado.
Eram antigas solidões banhadas
De mansos rios inocentes
Por entre as matas recortadas.
Não havia ninguém. A solidão
Mais parecia um povo inexistente
Dizendo coisas sobre nada.
Sim, os campos sem alma
Pareciam falar, e a voz que vinha
Das grandes extensões, dos fundões crepusculares
Nem parecia mais ouvir os passos
Dos velhos bandeirantes, os rudes pioneiros
Que, em busca de ouro e diamantes,
Ecoando as quebradas com o tiro de suas armas,
A tristeza de seus gritos e o tropel
De sua violência contra o índio, estendiam
As fronteiras da pátria muito além do limite dos tratados.
- Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato,
Vós fostes os heróis das primeiras marchas para o oeste,
Da conquista do agreste
E da grande planície ensimesmada!
Mas passastes. E da confluência
Das três grandes bacias
Dos três gigantes milenares:
Amazonas, São Francisco, Rio da Prata ;
Do novo teto do mundo, do planalto iluminado
Partiram também as velhas tribos malferidas
E as feras aterradas.
E só ficaram as solidões sem mágoa
O sem-termo, o infinito descampado
Onde, nos campos gerais do fim do dia
Se ouvia o grito da perdiz
A que respondia nos estirões de mata à beira dos rios
O pio melancólico do jaó.
E vinha a noite. Nas campinas celestes
Rebrilhavam mais próximas as estrelas
E o Cruzeiro do Sul resplandecente
Parecia destinado
A ser plantado em terra brasileira:
A Grande Cruz alçada
Sobre a noturna mata do cerrado
Para abençoar o novo bandeirante
O desbravador ousado
O ser de conquista
O Homem!
O HOMEM
Sim, era o Homem,
Era finalmente, e definitivamente, o Homem.
Viera para ficar. Tinha nos olhos
A força de um propósito: permanecer, vencer as solidões
E os horizontes, desbravar e criar, fundar
E erguer. Suas mãos
Já não traziam outras armas
Que as do trabalho em paz. Sim,
Era finalmente o Homem: o Fundador. Trazia no rosto
A antiga determinação dos bandeirantes,
Mas já não eram o ouro e os diamantes o objeto
De sua cobiça. Olhou tranqüilo o sol
Crepuscular, a iluminar em sua fuga para a noite
Os soturnos monstros e feras do poente.
Depois mirou as estrelas, a luzirem
Na imensa abóbada suspensa
Pelas invisíveis colunas da treva.
Sim, era o Homem...
Vinha de longe, através de muitas solidões,
Lenta, penosamente. Sofria ainda da penúria
Dos caminhos, da dolência dos desertos,
Do cansaço das matas enredadas
A se entredevorarem na luta subterrânea
De suas raízes gigantescas e no abraço uníssono
De seus ramos. Mas agora
Viera para ficar. Seus pés plantaram-se
Na terra vermelha do altiplano. Seu olhar
Descortinou as grandes extensões sem mágoa
No círculo infinito do horizonte. Seu peito
Encheu-se do ar puro do cerrado. Sim, ele plantaria
No deserto uma cidade muita branca e muito pura...
Citação de Oscar Niemeyer
- "... como uma flor naquela terra agreste e solitária…"
- Uma cidade erguida em plena solidão do descampado.
Niemeyer
- " ... como uma mensagem permanente de graça e poesia..."
- Uma cidade que ao sol vestisse um vestido de noivado
Niemeyer
- " ... em que a arquitetura se destacasse branca, como que flutuando na imensa escuridão do planalto..."
- Uma cidade que de dia trabalhasse alegremente
Niemeyer
- "…numa atmosfera de digna monumentalidade..."
- E à noite, nas horas do langor e da saudade
Niemeyer
- " ... numa luminação feérica e dramática..."
- Dormisse num Palácio de Alvorada!
Niemeyer
- " ... uma cidade de homens felizes, homens que sintam a vida em toda a sua plenitude, em toda a sua fragilidade; homens que compreendam o valor das coisas puras..."
- E que fosse como a imagem do Cruzeiro
No coração da pátria derramada.
Citação de Lucio Costa
- "…nascida do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos que se cruzam em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz."
A CHEGADA DOS CANDANGOS
Tratava-se agora de construir: e construir um ritmo novo.
Para tanto, era necessário convocar todas as forças vivas da Nação, todos os homens que, com vontade de trabalhar e confiança no futuro, pudessem erguer, num tempo novo, um novo Tempo.
E, à grande convocação que conclamava o povo para a gigantesca tarefa começaram a chegar de todos os cantos da imensa pátria os trabalhadores: os homens simples e quietos, com pés de raiz, rostos de couro e mãos de pedra, e que, no calcanho, em carro de boi, em lombo de burro, em paus-de-arara, por todas as formas possíveis e imagináveis, começaram a chegar de todos os lados da imensa pátria, sobretudo do Norte; forarn chegando do Grande Norte, do Meio Norte e do Nordeste, em sua simples e áspera doçura; foram chegando em grandes levas do Grande Leste, da Zona da Mata, do Centro-Oeste e do Grande Sul; foram chegando em sua mudez cheia de esperança, muitas vezes deixando para trás mulheres e filhos a aguardar suas promessas de melhores dias; foram chegando de tantos povoados, tantas cidades cujos nomes pareciam cantar saudades aos seus ouvidos, dentro dos antigos ritmos da imensa pátria...
Dois locutores alternados
- Boa Viagem! Boca do Acre! Água Branca! Vargem Alta! Amargosa! Xique-Xique! Cruz das Almas! Areia Branca! Limoeiro! Afogados! Morenos! Angelim! Tamboril! Palmares! Taperoá! Triunfo! Aurora! Campanário! Águas Belas! Passagem Franca! Bom Conselho! Brumado! Pedra Azul! Diamantina! Capelinha! Capão Bonito! Campinas! Canoinhas! Porto Belo! Passo Fundo!
Locutor no 1
- Cruz Alta...
Locutor no 2
- Que foram chegando de todos os lados da imensa pátria...
Locutor no 1
- Para construir uma cidade branca e pura...
Locutor n 2
- Uma cidade de homens felizes...
O TRABALHO E A CONSTRUÇÃO
- Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios.
- E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas...
- Ah, as empenas brancas! -
- Como penas brancas...
- Ah, as grandes estruturas!
- Tão leves, tão puras...
Como se tivessem sido depositadas de manso por mãos de anjo na terra vermelho-pungente do planalto, em meio à música inflexível, à música lancinante, à música matemática do trabalho humano em progressão ...
O trabalho humano que anuncia que a sorte está lançada e a ação é irreversível.
Cantochão
E ao crespúsculo, findo o labor do dia, as rudes mãos vazias de trabalho e os olhos cheios de horizontes que não têm fim, partem os trabalhadores para o descanso, na saudade de seus lares tão distantes e de suas mulheres tão ausentes. O canto com que entristecem ainda mais o sol-das-almas a morrer nas antigas solidões parece chamar as companheiras que se deixaram ficar para trás, à espera de melhores dias; que se deixaram ficar na moldura de uma porta, onde devem permanecer ainda, as mãos cheias de amor e os olhos cheios de horizontes que não têm fim. Que se deixaram ficar muitas terras além, muitas serras além, na esperança de um dia, ao lado de seus homens, poderem participar também da vida da cidade nascendo em comunhão com as estrelas. Que viram, uma manhã, partir os companheiros em busca do trabalho com que lhes dar uma pequena felicidade que não possuem, um pequeno nada com que poder sentir brilhar o futuro no olhar de seus filhos. Esse mesmo trabalho que agora, findo o labor do dia, encaminha os trabalhadores em bando para a grande e fundamental solidão da noite que cai sobre o planalto…
" Deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantávele uma confiança sem limites no seu grande destino."
(Brasília, 2 de outubro de 1956)
Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
CORAL
Brasília Brasília Brasília
Brasília Brasília Brasília
Brasília Brasília Brasília
Brasília Brasília Brasília
Brasília Brasília Brasília
BRASIL! BRASIL! BRASIL!
Terra de sol
Terra de luz
Terra que guarda no céu
A brilhar o sinal de uma cruz
Terra de luz
Terra-esperança, promessa
De um mundo de paz e de amor
Terra de irmãos
Ó alma brasileira ...
... Alma brasileira ...
Terra-poesia de canções e de perdão
Terra que um dia encontrou seu coração
Brasil! Brasil!
Ah... Ah... Ah...
B r a s í l i a!
Dlem! Dlem!
Ô ... ô... ô..